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31.3.23

CICATRIZES DA ALMA - PARTE XXXV

 



O último dia daquele mês de agosto, amanhecera quente e com o céu ameaçando a continuação da chuva que se mantinha há vários dias, pois estava-se na época das chuvas, que rapidamente transformara a estrada de terra batida num lodaçal. 

Tiago, saíra do pavilhão que lhes servia de residência com Peter, o amigo inglês de clínica geral, Paco o anestesista espanhol, e as duas enfermeiras religiosas, bolivianas, que substituiriam as outras duas que ficaram assistindo os doentes internados, durante a noite. Percorriam com dificuldade os  poucos metros que os separavam do pavilhão hospital, dado o estado do caminho transformado num verdadeiro pântano. No país poucas são as estradas de alcatrão.  

Os três homens comentavam entre si, que não se compreendia a extrema pobreza dum país, que sendo rico em diamantes e urânio e não chegando aos cinco milhões de habitantes, estivesse entre os mais pobres do mundo. Certo que o facto de não ter saída para o mar, e as suas exportações só poderem navegar pelo rio ate Brazzaville e depois terem que seguir de comboio até Pointe-Noire no Congo, dificulta e encarece as exportações.

Mas esse não é o principal problema. O maior problema do país são os mais de oitenta grupos étnicos, com outros tantos dialetos, e o seu desejo de cada um se impor e governar os outros o que leva a constantes guerras tribais.

“Digamos -dizia Paco, - que aqui se encontra a base da famosa Torre de Babel”

O grupo encontrava-se a uns dez metros do hospital, quando de súbito se ouviu um som pavoroso, como se um trovão tivesse rebentado ali mesmo e Tiago sentiu-se projetado no espaço, enquanto sentia como se o rasgassem de alto a baixo. E de súbito havia apenas um poço negro e Tiago mergulhou nele.

Acordou banhado em suor. Estendeu a mão e acendeu o cadeeiro. Carregou no botão que elevava a cabeceira da cama. Tinha os músculos contraídos e parte do corpo em fogo como se tivesse sido ferido naquele momento.

 Pegou no copo e no jarro de água, mas as mãos tremiam-lhe tanto que entornou sobre a cana uma boa parte. Da gaveta da mesa-de-cabeceira tirou dois comprimidos de paracetamol que engoliu.

No início depois que recuperou a consciência no hospital, revivia todas as noites o acidente, tendo de tomar soporíferos para conseguir dormir. Aos poucos a situação foi melhorando. Agora havia mais de uma semana que o pesadelo não vinha atormenta-lo.

Chegara a pensar que enfim se teria livrado dele, e daí que apesar do seu estado físico, não ter melhorado nada, em relação ao que ele ansiava, tinha-se sentido mais calmo mais confiante. Mas agora o pesadelo voltara, e cada vez que isso acontecia, era como se Tiago estivesse a ter o acidente naquele momento. Ele sentia as mesmas dores, a mesma sensação que o seu corpo iria arder até ao fim e o mesmo pensamento de que tinha chegado ao fim, não voltaria a ver os pais nem a noiva.

Encheu de novo o copo de água que bebeu de um trago, como se acreditasse que a água apagaria o fogo doloroso que o consumia.

Olhou o relógio. Três e meia da manhã. Não dormiria mais. Sabia disso, tinha meses de experiência. Puxou a almofada para trás da cabeça, fechou os olhos e assim aguardou o nascer do dia.


Esta história volta depois da Páscoa

10.6.20

ISABEL - PARTE XXI






A caminho de casa, Isabel interrogava-se. Que raio se passava com ela? Seria o aproximar dos quarenta anos? Um problema hormonal? 
Entrou no prédio e dirigiu-se ao elevador
- Boa tarde menina, - saudou a porteira que se dirigia para a porta da rua com um balde e uma esfregona.
- Boa tarde dona Rosa. Desculpe não a tinha visto. E dizendo isto abriu a porta do elevador.
- Não faz mal menina. Tenha cuidado ao sair do elevador, o chão pode não estar seco ainda.
- Terei cuidado. Até logo e obrigada pelo aviso
- Até logo menina. Vá com Deus.
A conversa com a porteira tivera o condão de a desviar dos seus pensamentos e sentia-se agora mais calma.
Quando dez anos antes, ela fora morar para aquele prédio, já a dona Rosa lá estava. Era uma mulher sozinha. O marido morrera há anos e o único filho que tivera emigrara para França. Queria fugir dum futuro sem esperanças. Lá casou e lá foi pai por duas vezes. A princípio vinha sempre a Portugal, todos os anos em Agosto. Depois os filhos começaram a crescer, foram para a escola, arranjaram amigos e foram-se desinteressando das férias em Portugal. Afinal lá é que era a sua terra e lá estava o seu futuro. Se a nora fosse portuguesa, decerto faria pressão para vir ver a família. Mas não era. Aos poucos as visitas foram rareando. A última vez que viu o filho e os netos foi no funeral do marido. Nessa altura o filho insistiu em levá-la, tinha lá boa vida, boa casa que comprara há poucos meses, e até tinha um quartinho para a mãe. Mas ela não quis. Costumava dizer “Vivi aqui toda a vida, quero morrer aqui". E depois eles têm lá a sua vida, os seus costumes e eu ia para lá servir de estorvo. São outras terras, outras modas."E burro velho não aprende línguas". "Aqui, tenho a sorte de ter este trabalho, tenho a casa, não pago renda, os inquilinos são como amigos, tratam-me com carinho que mais hei-de querer?”
Um dia Isabel perguntou-lhe: - Mas não tem saudades deles?
-Ai menina, se tenho. É uma mágoa sem tamanho. Mas sabe a minha avó sempre dizia. Quando casamos uma filha, ganhamos um filho, quando casamos um filho perde-mo-lo.
- Nem sempre dona Rosa, nem sempre.
- Claro, menina há excepções. Mas do mesmo modo que uma filha puxa o marido para nós, a nora também puxa o marido para a família dela. É a ordem natural das coisas, não há como fugir dela.
Isabel tinha um carinho especial pela porteira. Talvez fosse a solidão das duas que as aproximava, ou porque de certo modo a senhora lhe fazia lembrar da sua falecida mãe. 
Tomou um duche rápido, envolveu-se num roupão de seda e dirigiu-se à cozinha.
Não lhe apetecia cozinhar. Procurou no frigorífico as sobras da véspera. Tinha um pouquinho de frango assado. Também um resto de arroz branco. Meia alface, um pimento, e um tomate.
Na dispensa havia sempre uma lata de milho. Decidida fez uma salada de frango.                             

28.11.16

A TI'ESPERANÇA DOS OLHOS VERDES PARTE III


                               Foto retirada da net




Pouco passava das dez da manhã, naquele soalheiro e luminoso dia, da primeira semana de Agosto, quando desci do autocarro no Terreiro do Paço.
Confesso que fiquei surpreendida com o que vi, pois naquele momento, havia um movimento pouco usual entre os vendedores, que corriam de um lado para o outro, carregando  as enormes alcofas, as mulheres com cestos à cabeça, procuravam ocultar-se atrás das grossas colunas da estação ou dentro das cabines telefónicas. Algumas metiam-se mesmo na gare dos cacilheiros ali ao lado.
- Que será que aconteceu?- Interroguei-me.
Mas logo os vi. Os fiscais que de vez em quando rondavam aquela zona, pregando multam nos mais descuidados, pois o comércio ali,era proibido. Nunca entendi porque não montavam uma ronda permanente e acabavam de vez com aquilo. Mas não. Apareciam e desapareciam como por artes mágicas. Fui até ao quiosque, que servia de bar e pedi um café, enquanto esperava que os fiscais se fossem. Porque quando eles chegavam não havia ninguém, mas assim que desapareciam de todos os cantos apareciam os vendedores e era um ai enquanto abriam de novo as suas cestas e espalhavam o produto em panos no chão. Ou em pequenas mesas de campismo que alguns traziam. Era assim uma espécie de jogo do gato e do rato.
Quando tudo serenou, procurei com o olhar a mulher dos olhos verdes, mas não a vi.
- Não veio hoje a mulher que vende cartas? – Perguntei à velhota dos amendoins.
- Não. Já ontem também não veio. Mas ali o meu “home” também vende cartas.
E apontava um velhote que vendia variadas coisas um pouco mais à frente.
- Obrigada, mas eu queria, era falar com ela, -menti. – Acaso sabe onde mora?
-Não. Ninguém sabe ao certo, embora digam que mora ali para os lados de Alcântara, na rua Prior do Crato. A menina é parente? – Perguntou a medo.
-Não. Apenas me pediram para lhe dar um recado, e queria fazê-lo.
-Bem – a mulher pareceu ficar mais à vontade, ao saber que eu não era da família, da tal mulher. A Esperança apareceu aí um dia a vender cartas, e aí ficou. Já lá vão muitos anos. Olhe, ainda eu nem tinha cabelos brancos.
Olhei a sua cabeça completamente branca, e pensei que na verdade já devia haver uns bons anos.
- Esperança, dos olhos verdes, - murmurei
A mulher continuou:
Olhe menina, eu se fosse a si esquecia-me desse recado. Eu não sei porquê, mas não gosto dela. Às vezes até chego a pensar que tem pacto com o demo. Passa horas e horas a olhar o mar, e depois sabe, há uma coisa que nem sei se lhe conte…


À margem:  Este conto tem como cenário, a Lisboa dos anos sessenta e procurei ser o mais rigorosa possível às minhas memórias. O facto de falar na Ponte Salazar, e não 25 de Abril, deve-se ao facto de que era esse o nome dela na altura, não significa nenhuma simpatia pelo nome do ditador, nem tão pouco esquecimento, do seu nome atual.