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13.12.23

UMA COLCHA COM HISTÓRIA


Uma colcha com história


 Quando a minha bisavó Anna veio para a América, trazia o mesmo espesso casacão e as botas altas que usava no trabalho rural. Mas a família deixou de trabalhar a terra. Em Nova Iorque, o pai passou a carregar coisas para uma camioneta, e o resto da família fazia flores artificiais o dia todo.

Todos tinham pressa, e havia sempre tanta gente na cidade! Não se comparava com a Rússia. Mas agora, esta era a sua casa, e a maioria dos vizinhos era exatamente como eles.
Quando Anna foi para a escola, o inglês que ouvia assemelhava-se a pedras a caírem em águas pouco profundas. Shhh… Shhhhh… Shhh… Mas seis meses bastaram para falar a nova língua. Já os pais nunca chegariam a aprender. Por isso, era ela que falava por eles.
As únicas coisas que tinha guardado da Rússia eram o seu vestido e a babushka (boneca de madeira) que ela gostava de atirar ao ar quando dançava. Mas o vestido estava a ficar-lhe muito pequeno. Quando a mãe lhe costurou um novo, Anna pegou no vestido velho e na babushka. Depois, de um cesto de roupas velhas, retirou a camisa do Tio Vladimir, a camisa de noite da Tia Havalah, e um avental da Tia Natasha.
“Vamos fazer uma colcha para nos ajudar a recordar sempre a nossa terra,” disse a mãe de Anna. “Será como ter a família lá na Rússia a dançar toda a noite à nossa volta.”
E assim foi. A mãe de Anna convidou todas as senhoras da vizinhança. Com os retalhos dos tecidos recortaram animais e flores. Anna mantinha as agulhas sempre com a linha enfiada e passava-as às senhoras à medida que precisavam delas. O remate da colcha foi feito com o tecido da babushka de Anna.
Às sextas à noite, a mãe de Anna dizia as orações que davam início ao Sabbath (nome dado ao dia de descanso semanal no judaísmo, simbolizando o sétimo dia no Génesis, após os seis dias da Criação.). A família comia o challah (pão trançado consumido no Sabbath) e canja de galinha. E a colcha servia de toalha de mesa.
Anna cresceu e apaixonou-se pelo meu bisavô Sasha. Para lhe demonstrar que queria ser seu marido, ele deu a Anna uma moeda de ouro, uma flor seca e um pouco de sal, tudo atado num lenço de linho. O ouro era para assegurar prosperidade, a flor para o amor, e o sal para que as suas vidas tivessem tempero.
Ela aceitou o lenço e ficaram noivos.
Sob o huppa (pano bordado sob o qual se colocam os noivos e que simboliza a união do casal), Anna e Sasha prometeram um ao outro amor e compreensão. Depois do casamento, homens e mulheres festejaram separadamente.
Quando a minha avó Carle nasceu, Anna embrulhou a sua filha na colcha para lhe dar umas calorosas boas-vindas ao mundo. A Carle deram uma prendinha em ouro, uma flor, sal e pão. Ouro para que nunca conhecesse a pobreza, uma flor para que sempre fosse rodeada de amor, sal para que a sua vida tivesse sempre tempero, e pão para que nunca conhecesse a fome.
Carle aprendeu a cumprir o Sabbath, a cozinhar, a limpar e a lavar.
“Qualquer dia estás casada,” disse Anna a Carle, e… de novo a colcha transformou-se em huppa para um casamento. Desta vez no casamento de Carle com o avô George. Os homens e as mulheres festejaram juntos, mas ainda não dançaram uns com os outros. No ramo de noiva de Carle havia uma moeda de ouro, pão e sal.
Carle e George mudaram-se para uma quinta no Michigan e a minha bisavó Anna foi viver com eles. E a colcha uma vez mais embrulhou uma menininha, Mary Ellen. Mary Ellen chamava a Anna Dona Avó. Esta tinha envelhecido bastante e estava frequentemente doente. A colcha mantinha-lhe as pernas quentinhas. No nonagésimo-oitavo aniversário de Anna, o bolo era um kulich, um bolo enriquecido com passas e frutas cristalizadas. Quando a bisavó Anna morreu, rezaram-se orações para elevar a sua alma ao céu. A minha mãe, Mary Ellen, era já crescida.
Mais tarde Mary Ellen saiu de casa e levou a colcha com ela. Quando ficou noiva, a colcha foi o seu huppa. Pela primeira vez, vieram ao casamento alguns amigos que não eram judeus. A minha mãe usou um conjunto de saia e casaco, mas no seu ramo havia ouro, pão e sal. A colcha deu-me as boas-vindas a mim, Patrícia, a este mundo… e foi a toalha de mesa na festa do meu primeiro aniversário.
À noite, antes de adormecer, eu passava os meus dedos pelas bordas de cada animal da colcha. E contava à minha mãe histórias acerca dos animais. Por sua vez, ela contava-me a quem pertencera a manga de que era feito o cavalo, de quem era o avental de que era feita a galinha, a quem pertencera o vestido que tinha dado lugar às flores, e de quem era a babushka que debruava a bainha da colcha. A colcha era uma capa a fingir sempre que eu estava na arena, por vezes uma tenda na húmida floresta amazónica.
No meu casamento com Enzo-Mario, homens e mulheres dançaram juntos. No ramo havia ouro, pão e sal — e um salpico de vinho, para que eu conhecesse sempre a alegria. Muitos anos depois segurei Traci Denise pela primeira vez naquela colcha. Três anos mais tarde a minha mãe segurou Steven John na colcha pela primeira vez. Estávamos todos muito orgulhosos do novo irmãozinho da Traci. E tal como a mãe, a avó e a bisavó antes deles, também eles usaram a colcha para celebrar aniversários e fazer capas de super-heróis.

À medida que os anos passavam e Traci e Steven iam crescendo, a avó adquiriu o gosto de contar a história da colcha em todos os encontros familiares. Todos sabíamos a quem pertenciam as roupas de que eram feitos cada flor, cada animal. A minha mãe teve até a sorte de mostrar a maravilhosa colcha aos netos do meu irmão, bisnetos dela. Quando morreu, foram rezadas orações para elevar a sua alma ao céu. Traci e Steven eram agora crescidos e estavam a preparar-se para começar as próprias vidas.
E agora … agora só espero o dia em que vou ser avó … e em que irei também eu contar a história da Colcha aos meus netos.

Patricia Polacco
The keeping quilt
New York, Simon and Schuster, 2010
(Tradução e adaptação)


Fonte A

8 comentários:

Citu disse...

Me gusto . Te mando un beso.

Pedro Coimbra disse...

Tenho várias.
Aqui e em Coimbra.
E o xaile da casamento da minha avó materna na sala em Gaia.

Fatyly disse...

Gostei muito e é caso para dizer que a vida dá muitas voltas.
Não tenho recordações dos meus tios e avós porque a maldita guerra pulverizou tudo.
Já em Portugal tenho muitas coisas feitas pela minha mãe que hoje está uma sombra do que foi o que me comove muito e ir ao Lar custa-me muito mas faço sempre que posso para não se sentir só!
Beijos e um bom dia

Joaquim Rosario disse...

Bom dia
Retalhos que dão vida à vida .

JR

Olinda Melo disse...


Que história maravilhosa, Elvira.
Traz-nos as tradições de uma família,
fazendo-nos conhecer os usos e costumes
do seu país de origem, bem como da sua
religião.

Adorei.

Abraço
Olinda

Tintinaine disse...

Histórias de judeus e emigrantes está muito em moda, hoje em dia, cada um procura ainda a sua Terra Prometida (e nunca encontrada).

Manu disse...

Uma história que me encantou.

Há costumes que nunca se perdem e ainda bem.
Abraço e saúde

Roselia Bezerra disse...

Boa tarde de paz, querida amiga Elvira!
Um belo conto onde se perpetua a cultura de geração à geração.
Gosto muito de ter algo dos antepassados.
Sua criteriosa escolha abrilhantar esta época especial que vivemos com alegria no coração.
Tenha dias abençoados!
Beijinhos com carinho fraterno