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28.12.23

BOLO -REI



BOLO-REI


 Todos os anos, quando os velhos Reis Magos acabam de atravessar a pequena estrada de areia que se esboça entre caminhos de musgo e lagos feitos de bocados de espelho partido; quando a estrela de prata que se suspende entre os dois exemplares de “A Paleta e o Mundo” de Mário Dionísio se recolhe para regressar à velha caixa de papelão, com trinta anos de viagens, cheia de bocados de jornal amachucados que ainda guardam notícias de dias que já foram e onde se embrulham os cordeirinhos, os pastores, as oferendas várias que o Menino Jesus recebeu, apesar de já lhe faltar a mãozinha direita que alguém partiu em excesso de limpeza; todos os anos, dizia, recordo a história que o Fernando Midões me contou, certa tarde em que misturámos poemas com lágrimas.

De calças à golfe, lacinho à Baptista Bastos, fato de ver a Deus e celebrar o Dia de Reis, Fernando foi com a mãe jantar a casa das senhoras, gente de talher de prata, criadas de avental branco e crista engomada, cheias de silêncios e reverências.

Com olhos de amora madura, esse sorriso que ainda hoje conserva, sempre molhado de uma melancolia que tem de adivinhar-se mais do que ver-se, Fernando entrou na sala de jantar das anfitriãs, cujas portas só o espírito natalício abria, raros que eram os gestos de caridade e partilha. Assim se explicava a presença do rapazinho e sua mãe, viúva recente e que ali trabalhava de manhã à noite, para que a vida se assemelhasse ao que já fora.

Servidos os manjares da época: a canja onde as bolhas de gordura lembravam pequenos sóis fumegantes, o leitão de maçã vermelha na boca que olhava Fernando em gritos de sufoco que só ele, poeta em germinação, conseguia ouvir; os fritos vários que nas travessas exibiam a abastança, chegou finalmente e foi colocado em lugar de honra, no centro da mesa, ladeado por dois castiçais onde as velas vermelhas ardiam, o bolo-rei, roda magnífica de cores, frutas, pinhões, bocados de açúcar que lembravam neve e cujo esplendor ofuscava o dourado das filhós, os reflexos das garrafas de licor, o brilho dos copos de cristal.

Fernando, pequenino, queixo tocando a toalha de renda, olhava aqueles mistérios de cor e perfume e falava, falava, dizia coisas tão a propósito que as senhoras, enlevadas, não se cansavam de sorrir e felicitar a mãe que tal filho tinha. Então, a mais velha, cabeção de renda e camafeu de marfim a fechar as golas, pega na faca de prata e com solenidade, meticulosamente, parte o bolo. A criada ajuda à distribuição nos pratinhos de sobremesa.

— Agora, não se esqueçam: aquele ou aquela a quem calhar a fava terá de pagar o bolo-rei no ano que vem!

E entre comentários de enlevo, gula, elogios à tessitura e ponto ideal do levedo da massa, à abundância das frutas, à maciez e agrado do paladar, se comeu a sobremesa.

A prenda calhou à criada.

— Que sorte! Mostre lá!

— Olhe que medalha tão bonita! Parece uma libra de verdade. Até pode usar no fio que ninguém diz que não é autêntica.

— E tu, Fernandinho, não acabas de comer a tua fatia de bolo?

— Come que está bom e fofinho!

Fernando, subitamente silencioso, abanava a cabeça em negativas.

— Então, filho! Não sabes falar? Responde às senhoras: queres mais um bocadinho de bolo?

— Ao menos acaba esse!

— Está cansado, coitadinho! Deixe-o lá.

Fernando baixava a cabeça, cabelos lisos na testa. A noite ia adiantada. A Miguel Bombarda, onde moravam, ainda ficava longe. Sim, minha senhora, amanhã às oito cá estarei, se Deus quiser, para cortar o vestido novo e pôr em prova a saia do “tailleur”. Foi uma noite muito bonita. Muito obrigada! Fernando dá um beijo às senhoras e agradece. Diz obrigado, Fernando!

Fernando deu o beijo às senhoras, esticou a cara, pôs-se em bicos dos pés, encheu os olhos de gratidão.

— Diz obrigado, filho! Mas o que te aconteceu?

— Deixe-o lá, coitadinho, perdeu a língua. É o sono, não é?

Descem o elevador, abrem a porta da rua. A mãe, agastada, ralha:

— Mas que vergonha! Umas senhoras tão boas, recebem-nos como família, estavas a portar-te tão bem e agora isto, nem uma palavra de agradecimento, nem boa noite, é esta a educação que te tenho dado? Se o teu pai fosse vivo…

Então, já na rua, o frio de Janeiro a gelar-lhe as mãos e o nariz, a névoa a transfigurar a rua e as pessoas, Fernando, finalmente, abre a boca e lá do fundo deixa voar o mistério da sua inesperada mudez:

— É que me calhou a fava, mãezinha. Eu sei que tu não tens dinheiro para, no ano que vem, comprares um bolo-rei igual àquele.

E, na palma da mão pequenina, cuspiu a fava que ali nascia, quente ainda, do esconderijo em que estivera.

E ainda hoje, nas horas mais dolorosas, quando se esquece de mastigar a comida que arrefece no tabuleiro da cantina e prefere viajar no país da infância, Fernando Midões, meu irmão mais antigo, sente a ternura solidária do abraço e o húmido das lágrimas com que a mãe o aconchegou junto de si.

Sem palavras, mãe.

Sem palavras.


Maria Rosa Colaço

Viagem com Homem dentro (adaptação)

Leiria, Editorial Diferença, 1998

9 comentários:

Pedro Coimbra disse...

E eu que nunca gostei de bolo-rei??!!

chica disse...

Lindo conto e sabes que minha filha esteve agora, passou o Natal em Portugal e adorou o bolo- rei! Lindo dia! beijos, chica

Isa Sá disse...

Já comia uma fatia de Bolo-Rei!
Isabel Sá
Brilhos da Moda

Tintinaine disse...

Eu sou um fã desse bolo, até durante o ano o compro, um pequenino para matar as saudades e sem paciência para esperar pelo Natal!

A Paixão da Isa disse...

passando para desjar um feliz 2024 com muita saude bjs

Maria João Brito de Sousa disse...

Um conto tão belo que me enche, em simultâneo, de tristeza e ternura, minha amiga.

Um forte abraço!

António disse...

Com esta publicação, a estimada Elvira fez-me recordar a grande Maria Rosa Colaço.
Continuação de festas felizes.
Um abraço

redonda disse...

Também gostei muito desta.
As historias aqui são tão especiais, obrigada pela possibilidade de as ler aqui :)

Citu disse...

Lindo relato. Te deseo un prospero año para ti y tu familia. Te mando un beso.