O que chamava de crise
viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas,
sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força
e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma
revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego
mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte
havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor
que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o
olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois
namorados entrelaçavam os dedos sorrindo… E o cego? Ana caíra numa bondade
extremamente dolorosa.
Ela apaziguara tão bem a
vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena
compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas
para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite – tudo feito
de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava
tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce,
até a boca.
Só então percebeu que há
muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a
atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si,
segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia
ter saltado no meio da noite.
Era uma rua comprida,
com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente
reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e
um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando
o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe,
atravessou os portões do Jardim Botânico.
Andava pesadamente pela
alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os
embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.
A vastidão parecia
acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.
De longe via a aléia
onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.
Ao seu redor havia
ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o
Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o
meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo
era estranho, suave demais, grande demais.
Um movimento leve e
íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na
aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo
andar silencioso, desapareceu.
Inquieta, olhou em
torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava
na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada.
Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.
Nas árvores as frutas
eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de
circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de
sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore
pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O
assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.
Ao mesmo tempo que
imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas
dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço
era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante,
a mulher tinha nojo, e era fascinante.
As árvores estavam
carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia
crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela
estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a
guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio,
onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na
relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A
decomposição era profunda, perfumada… Mas todas as pesadas coisas, ela via com
a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do
mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu
cheiro adocicado… O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.
Era quase noite agora e
tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra
estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.
Mas quando se lembrou
das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação
de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda.
Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba.
Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia
apareceu espantado de não a ter visto.
6 comentários:
A escrita descritiva de Clarice Lispector desafia a imaginação, fá-la voar.
Deve-se dizer sempre a verdade, não é?
A verdade é que não gostei de ler este conto, pouco assunto e muita palha!
Continuação de uma boa semana!
Gostei de ler, vamos lá continuar!
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Tricoto sonhos e ilusões
Beijos e um dia feliz!
Bastante interessante.Beijinhos
Estou a esforçar-me, Elvira, mas prefiro as suas histórias.
Pobre Ana... é certo que lamento e gostaria de a ver livre desses pesos d'alma que lhe toldam a mente, mas é tudo tão distante, tão palavroso...Enfim, vou esforçar-me um pouco mais e ver se isto dá em liberdade ou em Alzheimer.
Um abraço.
Bom dia Elvira,
Um conto de difícil assimilação.
No entanto, gostei de ler mais este capítulo.
Beijinhos,
Ailime
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