Seguidores

3.11.21

UMA NOITE DE INVERNO - FINAL


 
 Ultimamente, passava-lhe muita vez pela cabeça, a ideia de acabar com todo aquele sofrimento. Cada vez mais insistente, mais insidiosa. Como uma libertação. Afinal, quando a dor se torna insuportável, a ideia da morte afigura-se-nos uma alternativa agradável. E se todos temos que morrer, mais cedo ou mais tarde, porque prolongar o sofrimento e não abreviar a data?

O programa televisivo chegou ao fim. Alzira dormitava no sofá. Os olhos cerravam-se-lhe a cabeça pendia. Mas era incapaz de se levantar. Ou sequer de expressar a vontade de dormir, que a invadia. Na verdade ela era incapaz de fazer qualquer coisa, de expressar qualquer sentimento. Ela nem sequer dá sinal, de saber quem é o marido que tanto amou.

Luís levantou-se e  foi à cozinha. Aqueceu um copo de leite e trouxe-o à esposa com o habitual comprimido. Depois levou-a à casa de banho, cuidou dos preparativos de todas as noites antes de a levar para o quarto. 

Aí despiu-a, vestiu-lhe a fralda cueca, enfiou-lhe o pijama e ajudou-a a deitar-se. Ajeitou-lhe a almofada e dirigiu-se à casa de banho. Pôs a roupa da esposa na tulha para lavar, lavou os dentes  passou a esponja no lavatório para tirar algum resquício de pasta de dentes, seguindo o ritual de todas as noites.
 Vagarosamente, como se tivesse à sua frente toda uma eternidade. 

Então foi à sala, desligou a televisão, mas em vez de apagar a braseira, como fazia todas as noites antes de encerrar as janelas de vidro, pôs-lhe  mais carvão e levou-a para o quarto. 

A noite estava fria, ninguém ia estranhar, quando dessem por falta deles e os encontrassem. Sorriu com tristeza, mas aparentando grande serenidade.

 Despiu-se, dobrou meticulosamente as calças pelo vinco, e colocou-as na cadeira que estava aos pés da cama. Vestiu as calças do pijama, e desapertou os botões da camisa, despiu-a e colocou-a nas costas da mesma cadeira. Tinha no rosto uma expressão serena, e um novo brilho no olhar. Despia-se devagar, como se sentisse um certo prazer em cada movimento. Vestiu o casaco do pijama. 
E finalmente deitou-se.

 Puxou para si o corpo da mulher adormecida, e abraçou-a com carinho. Depositou um beijo nos seus cabelos embranquecidos, murmurou um “amo-te” seguido de um “perdoa-me, meu amor”, dirigiu uma breve oração ao Altíssimo e  fechou os olhos, sentindo-se finalmente em paz.


FIM



Elvira Carvalho

E cá está o episódio final. Como sempre gostaria da vossa opinião sobre o conto.
Na vossa opinião o que Luís fez, foi ou não um ato de amor?



17 comentários:

chica disse...

Puxa, que final,Elvira! Tua criatividade é imensa! E adortei o conto. O final pode ser visto de vários mpodos, mas Luis agiu por amor, para não ver mais a dor... Há que ter coragem! beijos, tudo de bom,chica

Emília Pinto disse...

Não contava com este final, mas, eentendo bem o desespero de uma pessoa vendo a outra completamente ausente , sem conseguir entender o tanto de amor que recebia do marido. Foi um acto de amor impressionante e que precisa de muita coraagem para ser manifestado desta forma. Não o critico, antes, pelo contrário, valorizo pessoas com essa força interior. Não seria capaz, mas dou valor a quem tem essa capacidade. Gostei muito do conto, Elvira. Um beijinho e boa noite. Fiquem todos bem, especialmente com saúde
Emilia

noname disse...

Este conto dá muito que pensar.

Beijinhos, Elvira

Pedro Coimbra disse...

Há uma luz ao fundo do túnel, Elvira.
E vem de Portugal.
Para que não haja mais Luís e Alzira nem braseiras.

Majo Dutra disse...

Uma eutanásia amorosa muito especial...

Triste, mas muito belo. Abraço.
~~~

Joaquim Rosario disse...

Bom dia
Um final com uma intensidade muito profunda.
Confesso que me custa dar uma opinião sobre o ato do Luiz , pois eu não teria coragem para o fazer .

JR

Ailime disse...

Bom dia Elvira,
Um final sobre o qual tenho dificuldade em pronunciar-me.
O tema foi muito bem abordado pela Elvira. Gosto da forma desassombrada como encara a realidade.
Beijinhos e saúde.
Ailime

Tintinaine disse...

O S. Pedro é que não vai achar graça nenhuma, quando os vir aparecer lá em cima! Atentar contra a própria vida é um pecado mortal!

Maria João Brito de Sousa disse...

Foi um acto de amor, na minha humilde opinião. Mas também foi uma imperiosa necessidade de não sofrer mais, o que pode transformar um suicídio/homicídio num acto de egoísmo.
Somos bichos extraordinariamente complexos, minha amiga. Quem sou eu para julgar quem tanto sofreu?

Forte abraço e muita saúde!

" R y k @ r d o " disse...

Tudo está bem quando acaba bem.
.
Deixando cumprimentos
.
Pensamentos e Devaneios Poéticos
.

Maria Dolores Garrido disse...

Querida Elvira, acho belo o final, em que não falta o carinhoso 'amo-te', se pensar só a nível de ficção.
Porém, a nível humano, pressinto o sofrimento de ambos e optaria por outra solução com vida dentro, embora compreenda o dilema das personagens e da sua como autora/narradora.
Gostei da sua iniciativa para que os leitores se pronunciassem.
Um grande abraço, Elvira, e obrigada por estas histórias tão humanas que nos põem a falar e a refletir.

Janita disse...

Já duas vezes que leio este final e, sinceramente Elvira, nem sei o que lhe diga. Foi a opção de alguém já muito sofrido, perante uma situação que tendia a piorar.

Pode parecer-lhe pueril e até descabida esta aflição que agora me passou pela ideia, Elvira...Até quando ficariam ali os dois, até que os seus corpos fossem descobertos, se não tinham filhos nem netos nem família nem amigos que dessem pela sua falta? Uma dor de alma, uma tragédia...

Um abraço e obrigada, Elvira.

aluap disse...

Como esta é a altura do ano em que celebramos os "nossos" mortos e na sexta-feira perdi uma tia muito querida, nem sei o que diga...
Foi para mim uma semana de muita saudade.
Que descansem em paz!

redonda disse...

Triste, tão triste. Estava já a prever algo assim.
Parece-me muito um acto de desespero e de amor também.
um abraço
Gábi

teresadias disse...

Elvira, este final doeu!!!
Não critico o marido cansado e desesperado. Mas critico as instituições que deixam que situações como esta aconteçam.
Enfim, venha logo a eutanásia.
Beijo, boa semana.

lourdes disse...

Um final inesperado. É preciso muita coragem para o fazer mas às vezes o desespero dá a necessária coragem.
Bjs.

Rosemildo Sales Furtado disse...

E se ele fosse primeiro, o que seria dela? Até quando ela resistiria sem medicamentos, sem higiene, sem água, sem comida, etc.? O julgamento não cabe a mim, mas sim, a DEUS.

Belo conto Elvira. Parabéns!

Furtado