Durante anos, Rosa não teve outra vida que sair todos os dias para o monte com o rebanho. Nele cresceu e nele nasceram os primeiros sonhos de mulher. E fizera-se uma linda mulher. Tinha um corpo esbelto que as roupas grosseiras não conseguiam esconder, um rosto moreno no qual os enormes olhos negros brilhavam como faróis em noite sem lua. Os cabelos escuros, primorosamente entrançados, chegavam quase à cintura.
As longas horas de solidão passavam
rápidas, entretida entre sonhos e desejos. Um dia, um príncipe, encantado ou
não, de alguma cidade distante havia de chegar… e nesse dia a sua vida ia
mudar.
Naquela tarde, quando recolheu o
rebanho, a Ti‟Zefa, convidou-a para vir à noite à desfolhada. Todos os anos era
convidada mas, devido ao facto de se levantar antes de o sol nascer para
apascentar o rebanho ela nunca lá fora. Naquele dia, sabe-se lá porque tentação
do demo, aceitou ir.
A desfolhada era na eira do Sr.
António, não muito longe do alpendre da casa. O Sr. António era o patrão da
maioria dos habitantes na aldeia. Tinha feito fortuna no Brasil, mas isso fora
muitos anos antes de ela nascer.
Foi uma noite inesquecível. Rapazes e raparigas, alguns de aldeias vizinhas, sentavam-se numa grande roda à volta da eira. No meio desta, uma pequena montanha de espigas que iam descascando com perícia, pondo atrás de si o folhelho, e a seu lado em grandes cestos de vime a maçaroca loira. Mais tarde o folhelho seco seria usado para encher os colchões e as espigas seriam malhadas pelos homens, ali mesmo na eira. De vez em quando, soltavam-se as gargantas em afinadas quadras ao desafio, quase sempre entre um rapaz e uma rapariga, que faziam rir quem os ouvia, ora apoiando um, ora apoiando outro.
Foi uma noite inesquecível. Rapazes e raparigas, alguns de aldeias vizinhas, sentavam-se numa grande roda à volta da eira. No meio desta, uma pequena montanha de espigas que iam descascando com perícia, pondo atrás de si o folhelho, e a seu lado em grandes cestos de vime a maçaroca loira. Mais tarde o folhelho seco seria usado para encher os colchões e as espigas seriam malhadas pelos homens, ali mesmo na eira. De vez em quando, soltavam-se as gargantas em afinadas quadras ao desafio, quase sempre entre um rapaz e uma rapariga, que faziam rir quem os ouvia, ora apoiando um, ora apoiando outro.
Para descansar a garganta, ou quem
sabe para germinar nova leva de cantorias, preenchia-se o intervalo com
histórias que, de tão antigas, já haviam virado lendas, conhecidas de todos.
Mas, como quem conta um conto sempre lhe acrescenta um ponto, as histórias eram
sempre diferentes dependendo do narrador.
As histórias masculinas eram quase
sempre de bruxas e almas do outro mundo, onde não faltava nunca o próprio demo
disfarçado de bela dama com pés de cabra. As mulheres, regra geral, talvez por
medo, contavam histórias mais reais. Gracinhas dos filhos, ou dos sobrinhos,
eram sempre bem recebidas, mas às vezes também vinha à baila uma ou outra
história de “lobisomens”.
Por vezes, alguém gritava: -
milho-rei! E levantava-se exibindo no ar uma espiga de milho quase cor de vinho
como se fora um troféu. Os rapazes eram mais exuberantes. As moças,
especialmente as solteiras, tentavam esconder o seu entusiasmo que o brilho do
olhar denunciava.
Então, como diz a cantiga, cumpria-se
a lei e rapaz ou rapariga a quem ela saísse, tinha que percorrer a roda
abraçando todos os participantes da desfolhada, novos ou velhos, casados ou
solteiros. Era a oportunidade para os namorados trocarem um carinho na frente
dos pais, coisa que de outro modo era absolutamente proibida naqueles tempos.
continua na próxima Sexta.
26 comentários:
Bela parte da historia...Espectacular....
Cumprimentos
Uma brincadeira que não conhecia Elvira e naturalmente um entretenimento interessante da época, nas cidades do interior,
_daí nascem os namoricos também _ é a grande chance ... rs
boa noite Elvira
aguardo mais...
Um retrato real de outros tempos. Conviviam todos e eram felizes.
Há cerca de dez anos começaram a desfolhar o milho ainda na terra deixando para trás as palhas secas e as folhas brancas das espigas.
Há dois anos vieram as máquinas que colhem as espigas e as debulham deixando na terra tudo o resto.
É mais simples, mais rápido e mais barato.
Que texto gostoso! Cheio de imagens aí de Portugal e de um tempo que não volta mais.
Gosto de ler quando você coloca esse regionalismo na escrita, e talvez nem saiba disso.
Obrigado minha amiga!
A Rosa foi à desfolhada,
descamisou uma maçaroca amarela
o homem tem uma, na mão, acastanhada
sorridente a tocar na maçaroca dela.
A sua história, amiga Elvira.
está muito bem contada
da Rosa mulher bonita
por quem estará ela apaixonada?
Desejo-lhe um bom dia,
até ao próximo episódio, um abraço.
Eduardo.
Muito bom Elvira. A tradição ao pormenor, excelentemente romanceada. Para a semana, cá estarei !
Beijinho. D
Que emoção participar de um evento assim, fico a imaginar a alegria das meninas ao cortejar os rapazes e vice versa rs...
bjokas =)
Elvira,que bonita está essa história! Não conhecia essa brincadeira tão tradicional que deve ser nas aldeias portuguesas. Adorei ler! bjs,
Um jogo que eu desconhecia. O post me fez lembrar dos meus tempos de interior.
Gostei muito.
Beijo*
Renata
Lindo e interessante teu texto Elvira. Quantas coisas boas existem que nem conhecemos!Gostei muito!
Beijos, e obrigada.
Mariangela
Aqui o Sr. António, lembra-se perfeitamente das desfolhadas e das cantigas à desgarrada, belos tempos que já lá vão, os meus netos já não vão saber o que isso é!
O meu abraço e sigam as desfolhadas.
Oi Elvira,
Quanta criatividade você tem para escrever contos longos e belos
nunca tinha ouvido falar em desfolhada.
Beijos
Lua Singular
li a primeira e a segunda parte, aguardo então o resto da trama.
:)
Um abraço com muita chuva...
alagou o meu espaço
venho aqui pedir ajuda
pala visitar, obrigado!
Um abraço meu, vai a caminho,
receba-o se faz favor amiga Elvira
não o deixe perdido sem destino
no mundo não há melhor do que vida!
Eduardo.
Bom dia, Elvira
Cheguei de férias, e tenho andado, aos poucos, a agradecer as visitas recebidas na minha ausência.
Para não ser injusta com ninguém... faço-o seguindo as datas em que os comentários foram feitos lá na minha «CASA».
Não tem sido tão rápido quanto eu gostaria... mas tanto quanto é possível.
Felizmente já nos conhecíamos há 4 anos :), e pude ler este belíssimo conto.
Apesar de tudo não posso queixar-me muito da memória :)))
por isso lembro-me bem desta sua história.
Ainda bem que assim é porque basta-me ler só as primeiras palavras para recordar... e como luto com extrema falta de tempo... não vou perdendo o seguimento.
Bom fim de semana.
Um abraço
Mariazita
Vim cá para continuar a seguir mais esta trama...
Abraço do Zé
Olá, Elvira!
Outros tempos. Em que momentos como este serviam para esquecer como era então bem dura a vida.Numa altura em que as oportunidades para convívio eram tão poucas - e namoricos não oficiais proibidos...
E depois cá virei ler o resto.
Bom fim de semana; um abraço
Vitor
A desfolhada! Oportunidade para as raparigas se encontrarem e confraternizarem e, quem sabe, donde sairiam casórios.
Um excelente retrato da vida campesina e de costumes que, talvez, com o tempo desaparecerão...
Bjs
Olinda
Estas histórias passadas no campo, me fascinam. Nasci e vivi sempre em metrópoles, conhecendo muito pouco, da vida interiorana, levada por amigos ou algum parente. O enredo está ficando empolgante. Vamos `q terceira parte!
Estas histórias passadas no campo, me fascinam. Nasci e vivi sempre em metrópoles, conhecendo muito pouco, da vida interiorana, levada por amigos ou algum parente. O enredo está ficando empolgante. Vamos `q terceira parte!
Retrato fiel de um passado não tão longínquo assim. Cheira-me que algo de importante está para acontecer à heroína da história...
Aguardo ansiosamente desenvolvimentos.
Beijinho, uma doce semana
Ruthia d'O Berço do Mundo
OI ELVIRA!
ESTOU AQUI, LENDO E ADORANDO.
ABRÇS
http://zilanicelia.blogspot.com.br/
A desfolhada à moda antiga muito bem narrada por ti, Elvirinha. Um momento de alegria no meio de muitas horas de trabalho árduo.Participei há pouco tempo numa desfolhada mas os tempos são outros e a idade dos executantes é, geralmente, mais adiantada. Faz-se alusão ao milho-rei mas já não há os beijos e abraços de outrora. A Rosa continua entregue ao seu rebanho e aos campos. Melhorará algum dia a sua vida? Vou lendo com entusiasmo. Beijinhos
Que maravilha!!!
Bjbj Lisette
Passando para acompanhar a história e desejar um bom domingo!
Isabel Sá
Brilhos da Moda
Que engraçado! Como éramos e como somos.
A vida avança e progride.
Bom domingo.
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