O fundo do
poço
Calou-se
de novo. O seu rosto estava pálido. Era bem visível o sofrimento que lhe causavam
aquelas recordações. Pousei a minha mão sobre o seu ombro como se quisesse
animá-la mas as palavras não saíram.
- Apesar da
insistência de Artur para que fosse ao funeral, fechei-me no quarto e de lá não
saí durante dois dias. Nem sei quantas coisas me passaram pela cabeça nesse
espaço de tempo.
Depois
valendo-me de algumas amizades consegui um novo emprego. Tentava a todo o custo
juntar os cacos em que se transformara a minha vida, e especialmente a minha
relação com o Artur. Mas apesar de todo o meu esforço, já nada era como dantes.
Havia uma frieza latente, como uma sombra invisível que se instalara entre nós.
A casa que era o nosso ninho de amor parecia-me agora uma prisão que me
estrangulava. E acredito que devia acontecer a mesma coisa com o meu marido. Um
dia telefonou a dizer que ia chegar tarde, jantava em casa do irmão.
Seguiram-se
muito outros jantares. Recomecei a beber. Quando bebia pensava que o Artur não
estava com o irmão coisa nenhuma, que devia haver outra mulher na sua vida. E
quanto mais pensava nisso mais bebia. Era um maldito círculo do qual não
conseguia sair. Em breve estava de novo desempregada. O Artur escondia as
garrafas de bebida ou esvaziava-as e não deixava dinheiro em casa para que não
saísse a comprá-las. Um dia tirei-lhe dinheiro enquanto dormia, e mal pude
esperar que fosse para o trabalho, fui comprar uma garrafa de vinho que bebi
quase de seguida. Depois julguei ver a minha mãe no corredor da sala abanando a
cabeça. Esborrachei a garrafa de encontro à parede e sentei-me no sofá
onde adormeci. Quando acordei só pensava em matar o Artur. Matá-lo e suicidar-me depois. A ideia entrou na minha cabeça, e inundou-me como um tsunami. Não conseguia pensar em mais nada. Nessa noite enquanto ele via televisão, peguei numa
pesada jarra de vidro e tentei dar-lhe uma pancada na cabeça com ela.
Felizmente para os dois, ele como que pressentiu e desviou-se a tempo. A jarra
desfez-se de encontro à pequena mesa cujo tampo de vidro ficou estilhaçado. De
cabeça perdida, peguei num pedaço de vidro e cortei os pulsos.
O
silêncio que se seguiu foi entrecortado por um soluço. Não me contive e
abracei-a com força. Ficamos assim longos minutos. Depois ela estendeu-me os
braços e pude ver nitidamente as cicatrizes nos seus pulsos.
-O que
aconteceu depois foi muito confuso, e não me recordo o que se seguiu. Soube
depois que devo a vida ao Artur. Ele amarrou umas toalhas fazendo um garrote em
cada braço e telefonou para os bombeiros que me transportaram para o hospital.
Estive de novo internada na Psiquiatria. Desta vez foram 6 meses. Dos quais só
me lembro dos últimos dois. Quando saí o Artur levou-me para a nossa casa, mas
quando eu esperava que ele abrisse a porta, entregou-me as chaves, e informou-me que ele tinha ido viver para casa da mãe, que o nosso casamento
tinha chegado ao fim, e ia pedir o divórcio. Não sei se senti mágoa ou alívio.
Apesar de não me lembrar muito bem do que tinha acontecido, aquilo que
recordava envergonhava-me o suficiente para desejar recomeçar uma vida nova
longe de tudo e todos que me lembrassem o passado. O processo de divórcio foi
rápido, uma vez que estávamos de acordo. Vendemos a casa. Pagámos ao banco e
dividimos o resto. Com esse dinheiro aluguei um quarto, e comecei a procurar
trabalho. Não foi fácil. Eu não estava minimamente apresentável. Estava quase
redonda, da bebida e dos medicamentos. Tinha envelhecido. Não tinha uma roupa
decente que me servisse. E o dinheiro de que dispunha era muito pouco tinha que
controlar bem os gastos. A senhora que me alugou o quarto comentou que tinham
ficado sem a empregada que ia todas as semanas lavar as escadas do prédio.
Precisavam de arranjar outra. Pedi-lhe para ficar com o lugar. Comecei a ver
anúncios de empregadas domésticas. E em breve tinha quase todos os dias da
semana ocupados. O trabalho é pesado, mas ganha-se bem. Mergulhei no trabalho,
como se fora uma tábua de salvação. Chegava à noite tão cansada que quando caía
na cama já ia a dormir. Não sabia o que me reservava o futuro, mas uma coisa
era clara na minha cabeça. Bebida nunca mais. Claro que compensei a falta do
álcool com o tabaco. Se antes um maço durava dois dias, naquela altura eram
dois maços por dia e às vezes mais.
Continua
(direitos reservados)
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