25 DE NOVEMBRO
O ANO PASSADO NESTE DIA EU POSTEI AQUI CELESTE UM CONTO SOBRE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. HOJE APRESENTO-VOS OUTRA VITIMA DE VIOLÊNCIA.
O ANO PASSADO NESTE DIA EU POSTEI AQUI CELESTE UM CONTO SOBRE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. HOJE APRESENTO-VOS OUTRA VITIMA DE VIOLÊNCIA.
MARIA DA GRAÇA
Passou por mim. Ia a chorar e nem me viu. Estranhei.
Conhecemo-nos desde sempre e sempre nos falámos com a cordialidade duma amizade
cimentada nos anos. Interpelei-a:
- O que aconteceu Graça?
-Foi o meu filho, -respondeu num soluço.
Peguei-lhe no braço e perguntei:
- Queres falar?
Ela não respondeu. Mas eu percebi que sim.
-Vem comigo. Vamos tomar um café.
Enquanto nos dirigíamos ao café, recordei desde quando
conhecia Maria da Graça. Desde que me lembrava, sempre a conhecera. Somos mais
ou menos da mesma idade. Nos anos cinquenta os pais dela vinham todos os
Invernos trabalhar para a Seca do Bacalhau. Era um trabalho sazonal, mas vinha
muita gente do norte do país, para trabalhar na safra. Chegavam nos últimos
dias de Setembro, quando os barcos bacalhoeiros regressavam da Terra Nova e da
Gronelândia, e partiam em fins de Março, quando os navios voltavam para a
pesca. Maria da Graça vinha com os pais. E brincava comigo e com as outras
crianças cujos pais trabalhavam na Seca. Todos os anos era a mesma coisa até
que fez os 14 anos. Depois já vinha para trabalhar.
A Graça -eu sempre a chamei assim -nunca foi uma moça muito
bonita. Mas era uma jovem vistosa. Alta, forte, bem proporcionada, mas com um
rosto um tanto rude e uma voz demasiado forte, o que lhe dava um ar um tanto ou
quanto masculino. Boa moça, boa amiga, não tinha muita sorte com os namorados.
Talvez que eles se assustassem com ela. Os homens gostam de mulheres de aspecto
frágil, porque isso os faz sentir mais fortes, e lhes dá a oportunidade de se
armarem em protectores. Com a Graça, isso era impossível. Com 1,78m de altura e
72Kg de peso, assustava a maioria dos rapazes casadoiros.
Tinha dezanove anos quando conheceu Armindo. Armindo era um
bom rapaz, trabalhador, e ainda mais rude que ela. Tinha começado ainda menino
no monte a guardar gado e não sabia uma letra do tamanho dum comboio como
costumava dizer. Mas encantou-se com ela e daí ao casório, lá na igreja da
aldeia, foi só o tempo de correrem os "papéis". Até porque ele já tinha
ido às "sortes" e estava prestes a começar o serviço militar.
Pouco mais de um ano de casado, morria numa emboscada em
Cabinda, enquanto a mulher segurava uma gravidez de sete meses, apesar do
desgosto.
Quando o filho nasceu, Graça voltou à vida anterior. A vir
fazer a safra do Bacalhau, até porque agora precisava criar o filho, e a vida
era muito difícil naquela época. Pouco tempo depois da morte do marido, Graça
perdeu a mãe, e dois anos mais tarde o pai também se foi. Ela decidiu que não
ia mais lá para a aldeia. Quando o Bacalhau acabasse havia de arranjar uma casa
ou duas para trabalhar a dias. Queria que o filho fosse à escola e estudasse. E
se bem o pensou, logo o pôs em prática no fim da safra.
Começou por ajudar no trabalho do campo, numa das quintas da
Seca, e assim conseguiu ficar a morar com os caseiros, e não pagar renda.
Trabalhava na Seca do Bacalhau desde que os navios chegavam até que voltavam a
abalar, e depois na quinta, até que voltavam a chegar. Assim foi ficando aqui,
e criando o filho que mandou para a escola logo que fez 7 anos.
Tinha o filho dez anos, quando se juntou com aquele que ela
diz ter sido o homem da sua vida. Fernando era um vizinho que conhecia há
muito. Casado, pai de dois filhos, bom marido, bom pai. Graça admirava-o pelas
qualidades que todos lhe reconheciam. Um dia porém, a mulher de Fernando
enrabichou-se, por um mariola, com pinta de artista e lábia de bom malandro. E
de tal forma se apaixonou que desapareceu com ele deixando para trás o marido e
os dois filhos. Com pena do vizinho, Graça, começou a tratar-lhe da casa e dos
filhos. Mas a pena e a admiração que sentia depressa se transformaram num
sentimento muito mais forte. Como Fernando era casado e naquela altura não
havia divórcio, juntaram os trapinhos como se costuma dizer. E formaram uma
nova família, mas Graça não conseguiu ter mais filhos. Anos mais tarde, depois
da revolução de Abril, a mulher de Fernando apareceu a pedir o divórcio, e os
filhos.
E então ela pôde realizar o sonho de voltar a casar.
Mas nessa altura já Maria da Graça tinha um novo e mais grave problema na sua
vida. O filho com 18 anos tinha-se ligado a uns amigos esquisitos, abandonara
os estudos, não trabalhava, cada vez que saía, voltava estranho, agressivo e
depois levava a dormir um dia ou dois seguidos. Droga, começaram a murmurar as
vizinhas. O rapaz metia-se na droga. E a mãe levava os dias a chorar, e à noite
mostrava um sorriso forçado ao marido, para não o apoquentar. Uma noite, estava
ela na cozinha a "fazer horas" a ver se o filho chegava, quando o
marido gritou por ela do quarto. O grito da morte, pois quando ela chegou ao
quarto estava caído, meio atravessado na cama, como se tivesse tentado
levantar-se e não conseguisse. E morto. Maria da Graça, nem queria acreditar. Nem
deu pela chegada do delegado de saúde, nem pela ambulância que lhe levou o
marido para autópsia. Era como se o espírito se tivesse ausentado do corpo.
Mais tarde soube que tinha sido ataque cardíaco. Maria da
Graça nunca mais foi a mesma mulher. Mudou de casa, perdeu a alegria, tornou-se
uma mulher seca, amarga. Pouca gente sabe que se chama Maria da Graça. Toda a
gente a conhece por Maria.
Chegámos ao café e sentando-nos numa mesa mais afastada
perguntei-lhe então o que se passava.
- Tu sabes -respondeu-me, que o meu filho é um drogado.
Ninguém sabe o que eu tenho sofrido com ele. Por causa da droga roubava-me todo
o dinheiro, batia-me, levou-me as coisas de valor de casa e vendeu tudo. Para
sobreviver fiz de tudo, até cheguei a ir aos contentores do lixo em busca de
comida. Depois arranjei cartões de jogo para vender. Ele ficava-me com a pensão
e com o dinheiro que eu ganhava a lavar escadas. E eu ia-me governando com o
dinheiro dos cartões. Até ao dia que ele descobriu. E levou-me o dinheiro que
eu tinha com a ameaça de que me ia denunciar à polícia por vender jogo
clandestino. Desisti. Por medo dele mudei a fechadura da porta. E quando chegou
fez escarcéu para entrar e eu fingi que não estava em casa. A ver se ele se ia
embora. E sabes o que ele fez? Deitou-se no chão e ficou caladinho.
Quando passado largo tempo abri a porta para ir ao pão, ele
agarrou-me as pernas e com um puxão forte fez-me cair. E depois bateu-me. Eu
gritei, gritei e os vizinhos chamaram a polícia. Ele foi preso e da esquadra,
meteram-no numa casa de recuperação. Esteve lá um ano. Chegou anteontem. Pousou
as coisas em casa, saiu e chegou tarde da noite, drogado. Está a dormir há
quase dois dias e eu tremo de pensar que ele vai acordar a qualquer momento.
Que Deus me perdoe, mas penso que era uma sorte se ele
morresse.
Olhou para mim e disse:
- Ficaste escandalizada? Achas que sou um monstro?
Sem palavras que servissem de consolo, apertei-lhe o braço e
abanei negativamente a cabeça.
Maria Elvira Carvalho