Este conto é uma reedição. É um dos dois contos de Natal que escrevi e decerto os meus leitores mais antigos lembram-se dele. Foi recentemente publicado no jornal Rostos.
Um conto de Natal
Era uma vez um burro. Velho e cansado como todos os burros que
viveram anos e anos, dia após dia, sempre carregando no lombo, pesadas
cargas. Agora, no fim da vida, ele só esperava que o seu dono o deixasse morrer
em paz. Mas parecia-lhe que não era essa a intenção dele, quando nessa manhã de
Inverno o levou para a feira. O burro, que não era tão burro quanto o seu nome
dizia, percebeu que o dono, a quem servira toda a vida, se ia desfazer dele,
porque achava que não tinha mais préstimo. E embora reconhecesse que até
já não tinha forças para grande coisa, doía-lhe a ingratidão do dono.
Esperaram por mais de três horas, na feira. De vez em quando, aparecia alguém que parecia interessado no burro, mas ao analisá-lo de perto
concluía que era demasiado velho para o que precisavam, e depressa se
desinteressavam.
Um dos que se aproximaram para o ver, dissera mesmo ao dono.
"Está velho. Já não tem préstimo. Devia abatê-lo"
O velho burro estremeceu de terror. E pensou que os homens eram animais perigosos. Serviam-se dos outros animais, enquanto eles podiam, executar por si as tarefas mais difíceis, e quando estavam velhos, matavam-nos. Pensou se eles fariam o mesmo aos da sua espécie. Mandariam abatê-los quando estavam velhos?
Ao findar do dia, quando o dono se preparava para fazer o
regresso, e o pobre burro, não pensava noutra coisa que não fosse a frase cruel
ouvida de manhã, sem conseguir descortinar no seu dono se era ou não isso que
ele ia fazer, um homem alto e magro de ar calmo e bondoso aproximou-se do burro
e do seu dono.
Examinou-o e perguntou o preço.
-Muito alto para um burro velho, - disse.
Voltou a examinar o burro. Passou-lhe a mão pelo lombo. O burro
estremeceu. Sentiu os calos na mão do homem, e no entanto aquela mão, transmitiu-lhe
uma tal doçura, que o pobre do burro não habituado a isso, ficou maravilhado.
Ah! Se ele soubesse rezar, decerto teria rogado ao Deus do homem,
para que o comprasse, de tal forma o desejou. Mas ele era apenas um
burro.
-Dou-lhe metade, -disse o homem
O dono regateou. E o homem virou costas decidido a partir. O burro
ficou triste. Tão triste, que uma lágrima turvou o seu olhar cansado. Mas
então o dono, perdida já a esperança de melhor preço, chamou o homem.
Este voltou atrás e fez a compra.
O homem pegou o burro pela arreata, e dirigiu-se para casa. Pelo
caminho falou como se soubesse que o burro o entendia:
-Estás velho, amigo. Vamos a ver se consegues ajudar-nos.
Para te ser sincero, preferia um animal mais novo. Mas não vi nenhum. E
ainda que visse, talvez não tivesse dinheiro suficiente para o comprar. Espero
que dês conta do recado e nos ajudes na viagem.
A palavra viagem, não agradou ao velho burro, que já sentia
as patas fracas. Mas entre uma viagem e a morte, que decerto o esperava na
volta para casa do seu antigo dono, a escolha era óbvia.
Relinchou tentando dar ao novo dono, uma confiança de que ele
próprio duvidava.
Nessa noite, foi o burro muito bem tratado, em palavras, e ração,
pelo que adormeceu feliz da vida.
Na manhã seguinte, eis que o homem se apresenta com a esposa, e
uma carga que lhe põe no lombo, e os três empreendem a tal viagem. De vez em
quando, o burro olhava a mulher, que se apresentava em adiantado estado de
gravidez, e pensava que ela não ia aguentar muito tempo a caminhada. Em breve
teria que a carregar. Temia não ter forças para isso.
A meio do dia, fizeram uma pausa. Tiraram-lhe a carga e
deixaram-no livre, para que pastasse algumas ervas, que por ali espreitavam
entre o gelo do inverno, enquanto o casal se sentava sobre um pedaço de rocha e
comia alguma coisa.
Pouco tempo depois, o homem pegou o burro pela arreata e levou-o
até junto da mulher que se mostrava visivelmente cansada. O burro percebeu que
tinha chegado o momento tão temido. E se ele não fosse capaz de levar a mulher?
Que seria do casal, perdido no descampado ermo, em pleno inverno?
O homem ajudou a mulher a montar e pegando na carga até aí
transportada pelo burro colocou-a às costas e os três recomeçaram a viagem.
Mal retomaram a marcha, o velho burro abriu ainda mais os seus
grandes olhos, espantado. Que milagre era aquele? Porque não sentia qualquer
peso no lombo? Será que a pobre mulher tinha caído? No seu estado? Virou
a cabeça, para constatar que ela seguia bem sentada no seu lombo.
Então porque ele não sentia qualquer peso? Seguia sem esforço,
caminhando melhor que nos anos da sua juventude. E assim seguiram os três até
que à noitinha chegaram à cidade. O burro reconhecia aquela cidade. Várias
vezes lá fora com o antigo dono. Até já ficara num estábulo numa daquelas ruas,
uma vez que o dono pernoitara na cidade. Por isso, quando depois de percorrerem
várias estalagens, não encontraram lugar para pernoitar, e o casal já
desanimava, pensando como iriam resistir ao frio da noite gélida, o burro, ansioso por mostrar a sua gratidão ao casal, tomou o
rumo do estábulo que ele conhecia bem.
Elvira Carvalho
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10 comentários:
Lindo conto, Elvira! O burro tinha razão...o ser humano destrata todo e todos quando já não consegue os seus oblectivos; faz isso com os animais e, pior, faz isso com os outros seres humanos quando chegam a velhos; simplesmente são ignorados, como se fossem lixo. Espero que estejas bem, querida Amiga. Um beijinho
Emilia
Recordo o conto, sim senhora.
Boa semana
Ainda estou livre de Alzheimer, lembro-me bem desse burro choramingas!
Recordo o conto mas voltei a ler porque gostei imenso!
Beijos e um bom dia
Valeu reeditar! Lindo conto! beijos,chica
Creio que já me posso contar entre os seus leitores "antigos", amiga; recordo-me perfeitamente deste belo conto :)
Muita saúde e um grande abraço!
Os contos de Natal são significativos e este comprova o que disse.
Devo ter lido, Elvira mas não lembro e foi perfeita a reedição.
Muito interessante.
abraço, amiga
Tão bonito!! Adorei :))
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' A magia da noite' ...
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Votos de um excelente semana.
Beijo.
Adorei o conto .parabéns
Beijinhos e tenha uma ótima semana
https://duasirmasmaduras.blogspot.com/?m=1
Elvirinha! Esse conto é lindo!
Tinha vontade de ler novamente. Obrigado por repostar!
Um grande beijo no seu coração! Feliz Natal e um lindo e abençoado ano novo!
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