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25.11.12

MARIA DA GRAÇA


25 DE NOVEMBRO

O ANO PASSADO NESTE DIA EU POSTEI AQUI CELESTE UM CONTO SOBRE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA.  HOJE APRESENTO-VOS OUTRA VITIMA DE VIOLÊNCIA.







MARIA DA GRAÇA


Passou por mim. Ia a chorar e nem me viu. Estranhei. Conhecemo-nos desde sempre e sempre nos falámos com a cordialidade duma amizade cimentada nos anos. Interpelei-a:
- O que aconteceu Graça?
-Foi o meu filho, -respondeu num soluço.
Peguei-lhe no braço e perguntei:
- Queres falar?
Ela não respondeu. Mas eu percebi que sim.
-Vem comigo. Vamos tomar um café.
Enquanto nos dirigíamos ao café, recordei desde quando conhecia Maria da Graça. Desde que me lembrava, sempre a conhecera. Somos mais ou menos da mesma idade. Nos anos cinquenta os pais dela vinham todos os Invernos trabalhar para a Seca do Bacalhau. Era um trabalho sazonal, mas vinha muita gente do norte do país, para trabalhar na safra. Chegavam nos últimos dias de Setembro, quando os barcos bacalhoeiros regressavam da Terra Nova e da Gronelândia, e partiam em fins de Março, quando os navios voltavam para a pesca. Maria da Graça vinha com os pais. E brincava comigo e com as outras crianças cujos pais trabalhavam na Seca. Todos os anos era a mesma coisa até que fez os 14 anos. Depois já vinha para trabalhar.
A Graça -eu sempre a chamei assim -nunca foi uma moça muito bonita. Mas era uma jovem vistosa. Alta, forte, bem proporcionada, mas com um rosto um tanto rude e uma voz demasiado forte, o que lhe dava um ar um tanto ou quanto masculino. Boa moça, boa amiga, não tinha muita sorte com os namorados. Talvez que eles se assustassem com ela. Os homens gostam de mulheres de aspecto frágil, porque isso os faz sentir mais fortes, e lhes dá a oportunidade de se armarem em protectores. Com a Graça, isso era impossível. Com 1,78m de altura e 72Kg de peso, assustava a maioria dos rapazes casadoiros.
Tinha dezanove anos quando conheceu Armindo. Armindo era um bom rapaz, trabalhador, e ainda mais rude que ela. Tinha começado ainda menino no monte a guardar gado e não sabia uma letra do tamanho dum comboio como costumava dizer. Mas encantou-se com ela e daí ao casório, lá na igreja da aldeia, foi só o tempo de correrem os "papéis". Até porque ele já tinha ido às "sortes" e estava prestes a começar o serviço militar.
Pouco mais de um ano de casado, morria numa emboscada em Cabinda, enquanto a mulher segurava uma gravidez de sete meses, apesar do desgosto.
Quando o filho nasceu, Graça voltou à vida anterior. A vir fazer a safra do Bacalhau, até porque agora precisava criar o filho, e a vida era muito difícil naquela época. Pouco tempo depois da morte do marido, Graça perdeu a mãe, e dois anos mais tarde o pai também se foi. Ela decidiu que não ia mais lá para a aldeia. Quando o Bacalhau acabasse havia de arranjar uma casa ou duas para trabalhar a dias. Queria que o filho fosse à escola e estudasse. E se bem o pensou, logo o pôs em prática no fim da safra.
Começou por ajudar no trabalho do campo, numa das quintas da Seca, e assim conseguiu ficar a morar com os caseiros, e não pagar renda. Trabalhava na Seca do Bacalhau desde que os navios chegavam até que voltavam a abalar, e depois na quinta, até que voltavam a chegar. Assim foi ficando aqui, e criando o filho que mandou para a escola logo que fez 7 anos.
Tinha o filho dez anos, quando se juntou com aquele que ela diz ter sido o homem da sua vida. Fernando era um vizinho que conhecia há muito. Casado, pai de dois filhos, bom marido, bom pai. Graça admirava-o pelas qualidades que todos lhe reconheciam. Um dia porém, a mulher de Fernando enrabichou-se, por um mariola, com pinta de artista e lábia de bom malandro. E de tal forma se apaixonou que desapareceu com ele deixando para trás o marido e os dois filhos. Com pena do vizinho, Graça, começou a tratar-lhe da casa e dos filhos. Mas a pena e a admiração que sentia depressa se transformaram num sentimento muito mais forte. Como Fernando era casado e naquela altura não havia divórcio, juntaram os trapinhos como se costuma dizer. E formaram uma nova família, mas Graça não conseguiu ter mais filhos. Anos mais tarde, depois da revolução de Abril, a mulher de Fernando apareceu a pedir o divórcio, e os filhos.
E então ela pôde realizar o sonho de voltar a casar. Mas nessa altura já Maria da Graça tinha um novo e mais grave problema na sua vida. O filho com 18 anos tinha-se ligado a uns amigos esquisitos, abandonara os estudos, não trabalhava, cada vez que saía, voltava estranho, agressivo e depois levava a dormir um dia ou dois seguidos. Droga, começaram a murmurar as vizinhas. O rapaz metia-se na droga. E a mãe levava os dias a chorar, e à noite mostrava um sorriso forçado ao marido, para não o apoquentar. Uma noite, estava ela na cozinha a "fazer horas" a ver se o filho chegava, quando o marido gritou por ela do quarto. O grito da morte, pois quando ela chegou ao quarto estava caído, meio atravessado na cama, como se tivesse tentado levantar-se e não conseguisse. E morto. Maria da Graça, nem queria acreditar. Nem deu pela chegada do delegado de saúde, nem pela ambulância que lhe levou o marido para autópsia. Era como se o espírito se tivesse ausentado do corpo.
Mais tarde soube que tinha sido ataque cardíaco. Maria da Graça nunca mais foi a mesma mulher. Mudou de casa, perdeu a alegria, tornou-se uma mulher seca, amarga. Pouca gente sabe que se chama Maria da Graça. Toda a gente a conhece por Maria.
Chegámos ao café e sentando-nos numa mesa mais afastada perguntei-lhe então o que se passava.
- Tu sabes -respondeu-me, que o meu filho é um drogado. Ninguém sabe o que eu tenho sofrido com ele. Por causa da droga roubava-me todo o dinheiro, batia-me, levou-me as coisas de valor de casa e vendeu tudo. Para sobreviver fiz de tudo, até cheguei a ir aos contentores do lixo em busca de comida. Depois arranjei cartões de jogo para vender. Ele ficava-me com a pensão e com o dinheiro que eu ganhava a lavar escadas. E eu ia-me governando com o dinheiro dos cartões. Até ao dia que ele descobriu. E levou-me o dinheiro que eu tinha com a ameaça de que me ia denunciar à polícia por vender jogo clandestino. Desisti. Por medo dele mudei a fechadura da porta. E quando chegou fez escarcéu para entrar e eu fingi que não estava em casa. A ver se ele se ia embora. E sabes o que ele fez? Deitou-se no chão e ficou caladinho.
Quando passado largo tempo abri a porta para ir ao pão, ele agarrou-me as pernas e com um puxão forte fez-me cair. E depois bateu-me. Eu gritei, gritei e os vizinhos chamaram a polícia. Ele foi preso e da esquadra, meteram-no numa casa de recuperação. Esteve lá um ano. Chegou anteontem. Pousou as coisas em casa, saiu e chegou tarde da noite, drogado. Está a dormir há quase dois dias e eu tremo de pensar que ele vai acordar a qualquer momento.
Que Deus me perdoe, mas penso que era uma sorte se ele morresse.
Olhou para mim e disse:
- Ficaste escandalizada? Achas que sou um monstro?
Sem palavras que servissem de consolo, apertei-lhe o braço e abanei negativamente a cabeça.




Maria Elvira Carvalho



26 comentários:

FGV disse...

Dor, sofrimento e mais dor, realmente ficamos sem palavras perante estes dilemas.
Grande homenagem a todos os que são vítimas de violência.

Abraço

São disse...

Este Dia só foi reconhecido trinta e nove anos depois do assassinato político das três irmãs Mitabal por Rafael Trujillo.

Que longo e penoso caminho é o da Mulher!!

Um bom domingo, amiga

Joseph 1 disse...

Elvira,
Olá.

Sempre, toda a minha vida, fui anti-machista e anti-feminista!
O homem e a mulher foram criados para se entenderem, e para viverem uma vida NORMAL...sobretudo sem estas violências domésticas, quer feitas por homens, mas também por mulheres!
Já é tempo das pessoas se questionarem porque fazem isso e tentarem colocar um ponto final nestes Hábitos, nestas Tentações.

Que os tempos vindouros sejam melhores, para todos, mas teriam que ser irradicados da vivência das pessoas os dois cancros que condicionam a vida, nestes casos: A DROGA e a PROMISCUIDADE SEXUAL.

Tem um Bom Domingo, minha querida AMIGA.

Beijinhus ;)**

Anónimo disse...

Ou eu percebi mal, ou este ano já morreram até agora 30 mulheres vítimas de violência doméstica. No entanto, gostava de chamar a atenção para o facto de também haver homens que são vítimas disso, e que não deverão ser tão poucos assim.

a d´almeida nunes disse...

Uma história macabra de vida, mas real, pelo que se percebe do que se passa por aí.

É um grande privilégio da sorte não ter de enfrentar situações como a narrada. Infelizmente, elas são reais, e têm de ser enfrentadas pela sociedade.

O Estado social dava muito jeito.
Onde está o Estado Social, para onde caminha, passo estugado?...

Abraço

António Querido disse...

Triste história, mas infelizmente verdadeira...A violência doméstica está aí, mais do que nunca instalada em muitos lares, com a agravante de haver crianças, ou adolescentes a assistir a estas tristes cenas, deve-se ao desemprego, à droga, ao álcool,são os principais factores que provocam este flagelo humano, com incidência nos cérebros mais frágeis e o mais grave é que tende a piorar, o futuro dos meus netos assusta-me, embora tenham a sorte de não verem esses exemplos.
Com o meu abraço

Felipa Monteverde disse...

Como mãe de 3 rapazes as drogas sempre foram uma das minhas preocupações... é que nós, as mães, só descobrimos quando já é muito tarde para mudar alguma coisa, não queremos ver os defeitos dos nossos filhos até eles se tornarem por demais evidentes...

Bem escrito

Olinda Melo disse...


Cara Elvira

Que tristeza e dor a desta mãe. É a triste realidade de muitas famílias, de muitas mulheres que se veem maltratadas pelos próprios filhos. Vivem sem esperança em dias melhores o que as leva ao desespero.

Obrigada por trazer até nós esta história.

Abraço

Olinda

MARILENE disse...

Acredito que todos nós tomamos conhecimento de fatos dessa natureza. O sofrimento de quem tem filhos entregues às drogas leva à destruição. E não encontramos palavras para lhes dar alento. Bjs.

Teté disse...

Infelizmente, casos destes são mais frequentes do que julgamos. Agressões de pais, de maridos ou companheiros e até de filhos...

Há que continuar a lutar, para que não voltem a acontecer. Uma longa luta, ainda sem fim à vista!

Gostei da história, apesar da situação ser dramática!

Abraço, Elvira!

Leninha Brandão disse...

Elvira amiga,

Estou aqui com os olhos marejados e com uma indignação muito grande a me tomar o coração e a alma. Como é que um filho tão bem cuidado pode se atrever a tratar sua mãe desta forma abominável?
E você escreve de uma forma tal que nos faz ter vontade de ir até aí e dar uns bons safanões neste ingrato.

Bjsssss,
Leninha

http://leninha-sonhoseencantos.blogspot.com

Maria disse...

Elvirinha amiga:
História para o dia de hoje. Há tantas Graças, Marias, Rosas, Anas, que hoje, neste momento, estão a ser massacradas, espancadas, ofendidas!
Em 2011 foram 27 as que morreram. Este ano, quantas serão? A crise que vivemos piora as coisas. Talvez sejam mais.
Quanto à Graça, também não a condeno.
Há um momento, em que o medo, o horror, as dores, levam a pessoa a pensar, o que nunca tinha pensado.
Coitadinha da Graça! Vida triste, igual a muitas, infelizmente.
Abraço grande.
Maria

rosa-branca disse...

Olá amiga, tantas Marias que existem por aí . A droga é um dos maiores flagelos do nosso século. Uma história triste, como é triste a vida de muitas mães com filhos nessa situação. Tenho dois filhos e sempre tive muito medo disso, mas felizmente em boa hora o diga sempre se afastaram. Beijos com carinho

Unknown disse...

Elvira, boa noite!
Infelizmente uma história mais comum do que imaginamos.
Conheci um casal que durante anos sofreu a tal ponto com a toxicodependência do filho, que no dia em que ele morreu de overdose, não escondeu o alívio.

Beijinho,
Ana Martins

manuela barroso disse...

Olá Elvira, bem triste mas bem real, infelizmente.Histórias que se repetem e que trazem tanto sofrimento em silêncio. É caso para dizer, com a sua história verídica, que há pessoas que nasceram para sofrer!
Uma angùstia enorme que me provocam essas histórias de violência doméstica.
Muitos bjis

Unknown disse...

Vidas difíceis, duras e amargas.
Tantos que sofrem no silêncio dos dias e noites tenebrosas.

Conheço algumas histórias paralelas a esta. O caminho da droga é a perdição dos que se deixam levar e que nunca mais tem retorno nem reparação. São um inferno vivo para toda a família.

Estava a ver que não conseguia chegar ao fim porque facilmente me emociono e a revolta paralisa-me os pensamentos.

Infelizmente a violência doméstica é uma verdade dos nossos dias.
Quer eles mas também elas se batem e se agridem sem respeito.
Muitas vezes as vitimas maiores são as crianças.
Caminhamos para uma sociedade que se vai mutilando e auto-destruindo.

Os últimos governos destruíram a família e desautorizaram os pais e os professores.
Iremos todos sofrer as consequências desta politica a que a TV e a imprensa dá total cobertura.

Vitor Chuva disse...

Olá, Elvira!

Deve ser dor que dói a dobrar, a de ser batida e espancada por um filho, mais ainda o problema da droga. Vidas sofridas, que é preciso coragem para viver. E que certamente não irão melhorar, com todas as dificuldades e carências que se avizinham - é a triste realidade...

O texto é longo, mas lê-se dum fôlego e com imenso gosto - e está lindamente escrito.

Boa semana; abraço
Vitor

Edum@nes disse...

Em silêncio não fique
Se for agredida fisicamente
Dirija-se às autoridade, participe
Do agressor meliante!

Se não o fizer
Continuará a ser agredida
Não é um objecto a mulher
Do agressor deve ser protegida!

Boa noite para você,
amiga Elvira,
um abraço
Eduardo.

Kim disse...

Infelizmente esta é uma estória que eu conheço bem, com familiares directos e flizmente que não foi com os meus filhos.
Só que passa por essa tragédia é que lhe pode dar o real valor.
E parece que é uma praga que não vai terminar.
Gostei da forma como foi contada.
Beijinho Elvira

Anónimo disse...

A violência da realidade dos nossos dias.
Infelizmente.

Celina disse...

Oi querida Elvira quero primeiro agradecer a tua visita as tua belas palavras. E, uma história triste como tantas que ouvimos por ai, onde existe drogas infelizmente é assim, não existe respeito é o mal da humanidade.Rogo a DEUS misericórdia para ela e o filho. E para vc o meu abraço. Celina

Duarte disse...

Que qualidade na narração!
A leitura faz-se amena, o tema atrai desde o primeiro momento, ao acabar, desejaria que não tivesse fim, ou que o fim fosse outro.
Tudo evoluciona até isto...
Que outra sexta seja melhor...
Um grande abraço desde a emoção

esteban lob disse...

Hola Elvira:

Ese tipo de violencia, abominable y cobarde, es una lacra mundial, del cual parece no estar libre ningún país.

Un abrazo desde Chile.

Paulo Cesar PC disse...

Infelizmente Elvira, essa violência que a Graça viveu, tantas outras ainda vivem, como no caso do Brasil. A violência, seja ela como for e com quem for, é um ato abominável. Contra a mulher é pior ainda. Parabéns pelo texto. Um beijo no seu coração.

. intemporal . disse...

.

.

. boa tarde elvira,,, .

.

. em primeiro lugar os meus parabéns pela "entrada" deste Seu blogue . cuja imagem do presépio está soberba e fulgente . e na qual permanecem também os animais . mesmo que . Sua Santidade . o Papa . Bento XVI . diga que não estariam presentes . aquando do nascimento de Jesus .

.

. em segundo lugar o meu muito obrigado pela visita ao intemporal aquando do seu quarto aniversário . enquanto eu for vivo . não fechará portas . e contará sempre consigo .

.

. em terceiro lugar não há palavras que traduzam a monstruosidade inaudita da violência doméstica . essencialmente sobre as mulheres e muitas das vezes e também e por arrasto . sobre as crianças .

.

. urge re.pensar o mundo em que vivemos . sob pena de sucumbirmos todos . perante tanta irracionalidade .

.

. um bom fim de semana .

.

. um beijo meu .

.

.

lis disse...

Oi Elvira
A violência doméstica sempre existiu e as mulheres se calavam, hoje melhorou um pouco ma ainda continua sendo uma realidade,
Um conto digno de ser lido e refletido Elvira,
muito oportuno,
abraços e bom fim de semana