O Argus
Nos primeiros dias de Janeiro, Piedade regressa à terra. Na bagagem levava a lembrança da cidade grande, e do imenso mar, que a rodeava.
A safra do bacalhau termina a 23 de Fevereiro, e o pessoal volta à terra, nesse ano com menos dinheiro, que o Inverno foi chuvoso, e quando chovia, não se trabalhava. Naquele tempo as estufas ou seca artificial, ainda não funcionavam, e se chovia não se podia estender o bacalhau na rua. Então o pessoal ficava nas "maltas" sem trabalhar e sem ganhar, mas como é evidente tinham que comer, e lá se iam as migalhas amealhadas. Quando os navios vinham carregados, o trabalho estendia-se por todo o mês de Março e às vezes princípio de Abril.
Quando os navios chegavam, o primeiro trabalho, era fazer a descarga, trazendo o bacalhau para terra. Os navios precisavam ficar vazios, para se proceder à limpeza, e reparação quando necessária.
Depois eram vistoriados e reparados os dóris, pequenos barcos a remos que na seca, chamávamos de botes, pois naquele tempo, a pesca era feita à linha, do seguinte modo. Quando o navio mãe, chegava aos bancos de bacalhau da Terra Nova ou Gronelândia, fundeava, desciam-se os pequenos botes para o mar, já com um homem dentro, pois a pesca era feita assim, cada bote um homem. E cada homem começava a pescar no seu pequeno bote, com uma linha cheia de anzóis e iscas. Quando o bote ficava cheio, ele remava até ao barco para descarregar e voltava à pesca. Horas e horas seguidas, sem descanso, que havia que aproveitar o tempo quando ele dava, pois de um momento para o outro se levantava a "borrasca" e tinham que regressar ao navio, sob pena de o bote ser engolido pelas ondas que a "borrasca " levantava
Um bote em más condições, era a diferença entre a vida e a morte, nos mares gélidos do norte.
Por isso o trabalho de descarga do navio, era essencial, quanto mais rápido melhor. E a Seca tinha naquela altura quatro navios. O Crioula, que muitos anos mais tarde foi transformado em navio escola, e pertence à Marinha Portuguesa. O Argus, um escuna de quatro mastros, que na década de cinquenta, seria imortalizado por Alan Viliers, o grande escritor e navegador australiano, que fez nele, uma viagem aos bancos de bacalhau, o Hortense, um lugre de três mastros, e o Gazela, um lugre-patacho de três mastros, por muitos considerado o mais belo barco bacalhoeiro de sempre. A descarga era feita navio, a navio. Só depois que um ficava completamente vazio se passava para outro. E era feita assim.
De manhã uma lancha com algumas mulheres ia para bordo do navio. Lá, se dividiam, umas desciam ao porão, para apanharem o bacalhau, e o mandarem para o convés, onde outras o apanhavam e atiravam para a lancha que o levava até à ponte de madeira, onde outras mulheres o tiravam da lancha e o passavam de mão em mão pelos degraus, até uma "zorra" (1) que quando cheia, era empurrada por carris para terra. Aí era pesada, e de novo empurrada até às grandes câmaras frigoríficas onde era empilhado.
Por vezes este trabalho era feito debaixo de chuva intensa.
1) Zorra, era o nome que dávamos a uma grande caixa metálica com rodas semelhantes às dos comboios, que se deslocava em carris metálicos, empurrada pela força de duas mulheres.