Estava tudo a correr bem. Até o meu pai, que andava quase sempre, “cabisbundo” e “meditabaixo”, ria-se, ria-se até mais não. A certa altura, o avô chamou-me para a sua beira e disse-me:
— Olha para a luz da vela. Fixa o Espírito do Natal! O que vês? Eu lá olhei, mas o que via era que a chama se inclinava, lenta mente, ora para um lado, ora para o outro.
— Vês alguma coisa?
— Não vejo nada. Só a chama a dizer não, devagarinho!
— Para mim, na Noite de Natal, esta chama significa tudo o que o ser humano tem de bom dentro de si: a saudade do amor, da amizade e da partilha das coisas. É por isso que lhe chamo o Espírito do Natal. Nesta noite, quando fixo a luz da vela, diante dos meus olhos passam, como se fosse em cinema, histórias e vidas das pessoas que amei e se cruzaram comigo ao longo dos anos.
Estou agora a olhar para ela e estou a lembrar-me do Natal mais lindo que eu tive em toda a minha vida. Queres que te conte?
— Conta, avô, conta!
— Mas olha que é uma história triste! Mas verdadeira!
— Não faz mal! Mesmo assim, conta!
A minha mãe e o meu pai aproximaram-se do sítio onde nós estávamos. O avô fixou os seus olhos de formiga na chama da vela e, com uma voz quente e pausada…
— No tempo em que o Natal custava a chegar, vivia eu numa casa pequenina. Eu era pobre e não tinha brinquedos, mas não me importava. Bastava o cheiro que andava pelas ruas e pelos caminhos a fazer miminhos de fraternidade no coração das pessoas.
Era por isso que, quando tinha a tua idade, na véspera de Natal, ao passar pelas outras pessoas, dizia, cheio de alegria:
— Hoje é Natal!
A pouca distância de minha casa, havia uma outra, que não era bem casa. As paredes eram de chapa velha e o chão de terra batida.
O vento entrava por tudo o que era frincha e o frio estava ali plantado.
Uma fogueira fazia de fogão e a única cama que havia era feita de paus de pinheiro, ainda por descascar.
E nessa casa que não era bem casa, tão pequenininha e tão pobre de tudo, morava a Ti Adelaide Tintureira e os seus filhos: a Rosa e o Domingos.
Esta mulher de pele enrugada, de olhos verdes e vida amargurada foi, um dia, transformada em pássaro negro. Por duas vezes se quis matar, atirando-se da ponte de D. Luís para o rio Douro.
Da primeira vez, as saias largas que usava amorteceram a queda e um barqueiro que por ali andava viu-a e, remando rapidamente, retirou-a do rio, ainda com vida.
Da segunda vez que se quis matar estava muito vento. Ao atirar-se da ponte, uma rajada empurrou-a contra os fios de electricidade e neles ficou enrodilhada. Os bombeiros tiraram-na com vida, apenas ficando magoada no peito. Disseram as velhas da aldeia que tudo isso aconteceu porque o Anjo da Guarda da Ti Adelaide Tintureira, cansado de a proteger durante uma vida cheia de aflições, adormeceu duas vezes.
E, nessas duas vezes, a Morte, ao ver aquela mulher de olhos tristes, transformada em ave negra, não a quis e devolveu-a, sã e salva, para viver o resto do seu destino.
Naquele tempo, a Ti Adelaide Tintureira e os filhos viviam da venda da lenha, apanhada nos pinhais, e de pequenos serviços que lhe encomendavam. Ela e os filhos vestiam do que algumas “almas caridosas” lhe davam.
Passavam muito mal e, quando se vive assim, nem é bom sentir o cheiro do Natal nem ouvir falar de prendas nem de rabanadas. Isso só serve para entristecer a vida de quem tem pouquinho.
— Natal é um dia como os outros! – dizia a Ti Adelaide Tintureira para tentar convencer os filhos a não olharem para as roupas novas que os outros meninos vestiriam no dia seguinte.
Na noite de Natal, em cima da nossa pequena mesa, já fumegava a travessa de bacalhau cozido com batatas e couves-galegas.
Nesse ano, para além das rabanadas, havia um bocadinho de queijo, uns pastéis comprados no Porto e uma garrafa de vinho fino, oferecida pelo Ti Zé Estureta, como consoada, por lhe gastarmos da mercearia.
Para operários de vida dura, aquela ceia de Natal era quase um banquete de rei.
Quando íamos iniciar a refeição da noite de Natal…
— E se fôssemos chamar a Ti Adelaide Tintureira e os seus filhos para cearem com a gente? – propôs o meu pai.
A minha mãe disse que sim e, momentos depois, eu batia à porta da barraca da Ti Adelaide Tintureira.
Lá dentro, a chama da candeia de azeite furava a escuridão e os olhos da Rosa e do Domingos enchiam de tristeza aquela noite, que não era bem igual às outras.
Sem saber o que dizer nem fazer, seguiram-me até à porta da minha cozinha.
Disseram boa noite com voz sumida e, quando se sentaram à volta da mesa daquela família de pobres operários, que era a minha, dei com uns olhos verdes, acesos de alegria.
Eram os da Ti Adelaide Tintureira que pagava aquele gesto bonito com um olhar que já não usava há muito tempo: um olhar de felicidade.
Quando acabámos de comer e de jogarmos o rapa a pinhões, vim cá fora e, pelo intervalo das folhas de uma laranjeira, vi, lá longe, o brilho de uma estrelinha que mais ninguém viu.
Agora, quando olho para o céu, lembro-me dos olhos acesos da Ti Adelaide Tintureira, que foram morar para as estrelas e que me aparecem, na noite de Natal, para me recordarem dos bons sentimentos que ainda não foram apagados do coração das pessoas.
Quando o avô Fernando se calou, olhei para a chama da vela e senti que o Espírito do Natal estava ali e me tinha visitado naquela noite.
José Vaz
Hoje é Natal
Ed. Gailivro, 2000
11 comentários:
Cabisbundo e meditabaixo fez-me lembrar o Mia Couto.
Bonito conto.
Bfds
Na minha infância, também me coube a sorte de nascer pobre, conheci várias Adelaides e vieram-me as lágrimas aos olhos ao recordar esses tempos.
Bom fim de semana!
Um conto triste, mas que ao final mostra um Natal com verdadeiro sentido. beijos, chica
História bela e triste com um final muito humano.
Muito obrigada, Elvira, por trazê-la até nós.
Que esta quadra natalícia nos leve a reflectir
sobre o que se passa ao nosso redor, e agir.
Beijo
Olinda
Lindo e comovente.
Sempre que é Natal recordo os da minha terra onde imperava o calor. A mesa e respetiva ceia era no quintal na qual ainda cabiam quem os meus pais diziam para virem e vinham tão felizes:) Nada abundava mas do pouco se faz muito quando a vontade é grande.
Beijos e um bom dia
Belo conto de José Vaz, amiga :)
Um grande, grande abraço, esperando que tudo lhe esteja a correr pelo melhor.
Gostei muito do conto do José Vaz.
Tenho para mim que a Elvira transpira, e muito, o espírito de Natal.
Um beijinho e muita saúde :)
Mas que lindo conto, Elvira! Fez-me lembrar a minha aldeia onde a pobreza era muita e onde havia algumas Ti Adelaides. Que bom seria se a fraternidade que reina no Natal se mantivesse sempre no coração de todos nós. Não haveria fome, nunca! Beij8nhos, Amiga e espero que estejas melhor. Boa noite
Emilia
Belíssimo conto Elvira. Ótima escolha. Parabéns!
Abraços,
Furtado
Uma história tão linda e tão comovente.
Obrigada pela partilha aqui
um abraço muito grande
Gábi
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