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26.11.21

JOANA

( Nota, esta historia foi escrita e publicada em 2013. Na altura em dois capítulos. Reedito-a agora num só capítulo.)

De súbito o silêncio no quarto foi quebrado por um entrecortado gemido. Logo de seguida, Joana acordou. Às escuras sentou-se na cama, tentando não acordar o homem que dormia a seu lado.

Passou a mão pela testa, onde gotas de suor atestavam a aflição do pesadelo que acabara de ter. Suspirou. A luz da lua entrava pela porta semiaberta da varanda. Estendeu o braço, apanhou o roupão de cetim, e vestiu-o. Enfiou os chinelos e dirigiu-se à varanda. Sentia-se sufocar. Ficava sempre assim quando tinha aquele pesadelo. Na varanda olhou para baixo. A rua estava deserta.
 
Olhou o céu e pensou vagamente, se o céu da sua terra seria assim.  Ouvia falar muito da beleza das noites de África. Mas ela não se lembrava. Também pudera, tinha dois anos quando se dera a revolução dos cravos e logo depois o pai que era militar, regressou. Por isso Joana não se lembrava da sua terra. E a bem da verdade só muito raramente se lembrava que não era de Lisboa. 

Lançou um breve olhar para o quarto. Lá dentro o marido dormia tranquilamente. Joana suspirou e pensou que era melhor assim. Ela já tinha a noite estragada, não remediava nada se ele acordasse. Na verdade, seria até pior; pois a solicitude do marido só ia fazê-la sentir-se mais inútil, mais culpada.

 Era uma bonita mulher. Quase beirando os quarenta, tinha uma aparência de menina que a fazia parecer bem mais nova. Corpo bem modelado, pele morena. Os cabelos castanhos-claros tinham reflexos dourados que contrastavam com os olhos escuros. Era uma bonita mulher, mas tinha um problema.  Era estéril. O seu ventre, era terra árida, que não dava fruto. Esse era o problema que lhe roubava o sono.

Joana, - recordou como conheceu o marido. Tinha acabado o curso de Administração. Durante os estudos nunca conheceu ninguém que verdadeiramente lhe interessasse. Acabado o curso, e quando procurava uma empresa à qual se candidatara, cruzou-se com um garboso polícia, que lhe chamou a atenção. Ainda hoje não sabe se foi o seu jeito, se o fascínio da farda que lhe despertou a atenção. Uma semana depois, tinha-o à sua espera. Sem a farda, quase nem o reconheceu. Mas falaram-se e apaixonaram-se. Foi tudo muito rápido. Menos de um ano e casavam-se, numa bonita cerimónia numa aldeia lá para os lados da serra da Estrela, donde os seus pais eram naturais.

Tinham combinado que durante um ano não teriam filhos. Era um tempo de conhecimento e namoro que se concediam. E foi um ano de sonho. Ricardo era um homem apaixonado, bem-humorado, além de  partilhar as tarefas caseiras.

Aquele ano passou a correr e logo, logo estavam a fazer planos para o nascimento do primeiro filho. Mas o tempo foi correndo e o filho não vinha.

Desesperada Joana procurou ajuda médica. Ricardo acompanhou-a, e fez com ela toda a panóplia de exames que o médico pediu. E quando os resultados chegaram, veio a confirmação de que ela era estéril. O médico explicou-lhe que talvez não fosse irremediável. Afinal agora havia uma série de medicamentos novos que já tinham resolvido muitos casos como o dela. Joana sentiu que alguma coisa morria dentro dela. Desde pequena que sonhava ser mãe. Sentir dia a dia uma pequena vida a crescer dentro de si. Sentir o fruto do seu amor nos braços.

Quis morrer juntamente com os seus sonhos. Nessa altura Ricardo impôs-se com todo o seu carinho a sua solicitude, e a sua esperança.

"Deixa lá, somos jovens podemos esperar. Desses tratamentos, algum há de resultar, e um dia ainda teremos o nosso bebé" dizia-lhe enquanto tentava esconder o seu próprio desânimo.

E já lá iam dez anos. Dez anos de luta, de tratamentos, de esperança, e desespero. Um dia, um outro médico falou-lhes em inseminação artificial. Apesar de ser caríssimo avançaram para a inseminação. Não resultou à primeira. Raramente resulta - diziam-lhes familiares e amigos. É preciso insistir. 


Todavia  Ricardo decidiu que não se iriam submeter a uma segunda. Era por demais dolorosa, aquela espera, aquele morrer da ilusão.

Foi pouco depois que começaram os pesadelos da Joana. No sonho ela via-se no cemitério a assistir ao funeral do marido. E acordava desesperada. Aconselhada por uma amiga, consultou um psiquiatra. Que lhe disse, que o que ela tinha era um medo inconsciente, de que devido ao facto de não ser mãe, o marido a deixasse. Esse medo era trazido à superfície durante o sono, com o pesadelo da morte do marido. Porque, - disse-lhe o psiquiatra, - a morte era a separação que ela temia. Aconselhou-lhe uma conversa franca com o marido e uma possível adoção.

Joana, não se importava de ter um filho adotivo. Era uma criança a quem ela daria todo o imenso amor que lhe ia no peito. Porém pela primeira vez, Ricardo não esteve do seu lado. Ele negou-se redondamente a adotar uma criança. Disse que se Deus não quisera dar-lhes um filho, que não iam afrontar a Sua vontade, que a amava da mesma maneira e outras coisas que nem se lembra. E desde então voltaram os pesadelos.

Limpou as lágrimas e voltou ao quarto, enquanto num recanto qualquer da memória, ouvia a voz da avó recitando uma passagem da Bíblia.
-Árvore que não dá fruto, corta-se pela raiz...


FIM

Maria Elvira Carvalho

22.10.21

UMA NOITE DE INVERNO - PARTE III




Uma tarefa árdua.  Alzira corava quando o marido lhe lançava um olhar mais atrevido, tinha vergonha de se despir na frente dele, quanto mais abandonar a posição de missionário por uma nova experiência, ficar de luz acesa nos momentos de intimidade, ou retribuir-lhe as carícias. Foi preciso muita paciência, muito amor, até que a esposa, percebesse que não há nada proibido, nem vergonhoso entre dois seres que se amam, e entendesse que contrariamente ao que a mãe lhe dizia, o caminho para o coração de um homem, pode não ser exatamente o do estômago.

Três anos depois, Luís começava a ficar preocupado, pois apesar de não usarem métodos contracetivos, e terem uma vida sexual intensa, Alzira não engravidava. Depois de conversarem sobre o assunto, resolveram procurar ajuda médica. Luís pensava que talvez a esposa fosse estéril, e ela temia isso mesmo. Emagreceu, estava triste. Temia perder o marido. Adorava-o. Para ela, era Deus no Céu e o marido na terra. Ele percebeu. E apesar de ansiar por um filho, jurou-lhe que nada mudaria se ela não os pudesse ter. Amava-a de qualquer jeito. 

Porém depois de todos os exames feitos descobriu que afinal o problema era dele. Sofria de Azoospermia.
Ele não sabia o que isso era e então o médico explicou-lhe que o seu sémen  não continha espermatozoides. Era como se o seu sémen fosse um ovo apenas com clara, sem gema. Impossível ser pai, a não ser que recorresse à adoção. 
Ficou triste, enraivecido, doente. Sentia-se diminuído.

Foi nessa altura que se apercebeu do verdadeiro amor da esposa e de como ela tinha mudado. Convenceu-o que para ela, era muito mais importante o seu amor, do que o desejo de ter filhos. 
Ainda que não fosse mãe, era mulher, e uma mulher que ele fazia muito feliz.  Mas a maior prova de amor, recebeu-a, quando interrogada pelos pais, sobre quando lhes daria um neto, assumiu perante a sua família que nunca lhos daria, porque ela era estéril.

Anos mais tarde, pensando que aprendera o suficiente para tentar dar outro rumo à vida, Luís decidiu emigrar. Alzira deixou tudo e foi com ele. Estiveram quinze anos na Suíça. Trabalharam muito, fizeram imensos sacrifícios, mas regressaram com o dinheiro suficiente para comprarem um terreno e construírem uma bonita casa.

Não era nenhuma grande mansão, muito menos um palacete, mas era uma bonita casa térrea, com um pequeno terreno à volta que a mulher logo encheu de flores.



17.7.20

CILADAS DA VIDA - PARTE VII





Quinze minutos mais tarde, Olga introduzia o advogado no gabinete e preparava-se para fechar a porta quando João disse:
- Entra e fecha a porta. Quero que oiças o que vou dizer ao Afonso.
- Queres que tome nota …
-Não, senta-te, - disse estendendo a mão ao advogado.
- Boa tarde. Como foi no tribunal?
- Como esperávamos. Condenado.
- Bom, não foi por isso que te chamei. Estás comigo praticamente há quase quinze anos, embora no começo, eu fosse apenas mais um cliente e trabalhasses por conta própria. Já vais perceber, - disse ao ver o advogado arquear uma sobrancelha.  
-Até chegarmos aqui, passamos por muita coisa, de que não vou falar porque decerto recordam bem. E recordarão com certeza, quando há onze anos me foi diagnosticado um cancro no testículo.
Os primeiros tratamentos não resultaram e o médico avisou-me que teria de partir para  outro muito mais agressivo. Disse-me que só não o tinha começado de início, porque  mais de 80% dos homens que o faziam ficavam estéreis. Ele tinha a certeza que com aquele tratamento, me curaria, todavia eu tinha que saber da sua agressividade, e que havia um alto risco de me tornar estéril, pelo que me aconselhou a procurar um centro de recolha e doação de esperma, e fazer uma colheita, para meu uso exclusivo no futuro. Deves recordar-te disso, Afonso, já que te pedi que elaborasses os documentos, que determinavam que aquela recolha não podia ser utilizada nem em doações, nem em experiências laboratoriais e que se destinava ao meu uso exclusivo. Esperava utilizá-lo quando me casasse. Bom, esta tarde, telefonaram-me do Centro Clínico onde reservei a colheita,  informando-me que houve um erro de registo, e que por lapso a minha recolha, foi considerada doação, e já utilizada. Como devem calcular fiquei furioso, tentei que me informassem do nome da recetora, mas afirmam que elas estão protegidas pelo segredo que a lei impõe e nada mais me podiam dizer.
- E tens absoluta necessidade dessa reserva para seres pai? Os testes que fizeste pós tratamento não te disseram que a tua fertilidade não foi afetada?  - perguntou Olga.
- Quando fiz os testes no fim do tratamento, o médico informou-me que não tinha ficado estéril, mas que a mobilidade dos espermatozoides tinha diminuído muito, o que podia tornar muito difícil uma gravidez. Entretanto passaram onze anos,  e, embora repita com frequência, exames de controle, por causa do cancro, testes de fertilidade não voltei a fazer e não sei se agora haverá alguma hipótese de fertilidade. Mas ainda que assim seja, não quero acordar todos os dias, a pensar que algures há um filho meu, que poderá estar em dificuldades e eu sem o poder ajudar.
-E o que vais fazer? – perguntou o advogado. - Podes processá-los, um erro desses é gravíssimo. Ganharás a causa, terás direito a uma indemnização e o centro será multado.
Mas isso não te dá de volta o teu material genético. Além disso será um escândalo, a imprensa vai esmiuçar o caso até à saciedade, a tua vida particular andará na praça pública. Não creio que isso seja bom para ti.
- Eu sei. E espero não ter de chegar a esse ponto, mas se necessário não hesitarei. Quero que vás até lá, e consigas informar-te de tudo, sobre essa mulher. Ameaça-os de uma ida para o tribunal, diz-lhes que estou disposto a lutar até conseguir fechar-lhes as portas, enfim tu és o advogado, sabes melhor que eu o que terás de fazer. Quero um documento escrito da informação que me deram por telefone. Delega no Paulo os assuntos que tenhas em mãos, e durante o tempo que estiveres a tratar deste assunto, qualquer coisa que precises, pede à Olga. Não quero que a tua assistente tenha conhecimento do caso. Pelo menos até ver se conseguimos resolver isto a bem, deve ficar entre nós os três.
- Sabes que existe uma lei que protege o anonimato de dadores e recetores ?
-Sei. Mas será que essa lei se aplica, quando o dador não o é? Estuda o caso, usa os métodos que achares convenientes, mas consegue o nome dessa mulher.
- E se o não conseguir? - perguntou o advogado
-Então partiremos para a denúncia, e para os tribunais e vou fazer tudo para lhes retirar a licença de exercício, e os obrigar a fechar as portas. Porém tenho esperança de que não chegaremos a isso. Há sempre alguma alma caridosa que a troco de uma boa maquia, se esquece dos seus princípios...
- E dá com a língua nos dentes como dizia a minha mãe, - completou Olga.