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14.6.24

ENSAIO NUM ÚNICO ACTO

 



(A cena mostra uma sala moderna, de teto baixo branco, com iluminação incrustada. Numa das paredes, uma enorme tela a óleo. Pintura abstrata, em tons quentes, a contrastar com o frio mármore branco, da mesa baixa no centro da sala. Sob a mesa uma alcatifa em tons de castanho e bege. Sobre ela, um original solitário negro com uma rosa vermelha, e um livro. Dois modernos sofás de cor bege, colocados em L, e uma estante com um moderno ecrã de TV, e alguns livros completam o mobiliário. O tecido castanho do reposteiro que oculta a janela, prolonga-se nas almofadas que adornam os sofás. Ao fundo uma escada dá acesso ao andar superior.

A mulher, ainda jovem está sentada num dos sofás, a cara escondida entre as mãos. Estremecem-lhe os ombros, soluços incontidos. Pouco depois, procura no bolso do robe um lenço, e enxuga o rosto. Olha em frente. Percebe-se o sofrimento no seu rosto. Ergue os olhos e num soluço contido, lamenta-se.)

- Porquê, Senhor, porquê? Porque me castigas assim? Não sabes acaso que desde menina, sempre desejei ser mãe? Porque não o consigo? Para que me serve este ventre estéril e estes braços vazios? Que mal te fiz para me fazeres sofrer assim?

(Cala-se por um momento e logo continua.)

-Meu marido dorme serenamente. Que ele não saiba do meu desespero. Dos pesadelos que me atormentam as noites, do desespero que amarga meus dias. Sim porque eu tenho quase todas as noites, esta opressão que me esmaga o peito e quase me impede de respirar, enquanto assisto impotente à morte dele. Um sonho tão real, que acordo numa aflição sem tamanho. E depois venho para aqui e choro. Vou à janela, e olho o céu, na esperança dum sinal. Que não chega nunca. E volto para a cama de corpo e alma gelada. Tenho medo de que tanta amargura, me enlouqueça. Tenho de procurar ajuda. Quem sabe, um psiquiatra. Tenho de ir. Se meu marido acorda e não me vê, fica em cuidados.

- Senhor, afasta de mim este cálice. E não leves a mal se num gesto de raiva eu o derramar. Porque o meu desespero é maior que a esperança dum milagre.

(Lentamente dirige-se à escada que a levará de volta ao quarto.)

 

 Elvira Carvalho

9 comentários:

Pedro Coimbra disse...

Casais estéreis?
Conheço pessoalmente alguns.
Que ultrapassaram esse facto através da adopção.
Outros que nunca colocaram sequer essa hipótese.
Outros a quem fi negada essa possibilidade.
Bfds

Joaquim Rosario disse...

Bom dia
Um acto único mesmo !

JR

Fatyly disse...

Comovente e compreendo perfeitamente a angustia dessa mulher!
Beijos e um bom dia

chica disse...

Maravilhosamente bem escrito e descrito o ambiente e a angústia que essa mulher carrega no peito, sem com o marido querer dividir...
Lindo! beijos, chica

Andre Mansim disse...

Olá Elvira!
Nóssa, que forte esse texto.
Muito bem escrito, nos mínimos detalhes.
Chegamos a ver a cena em nossa frente.

Parabéns!
Um abraço carinhoso e fraterno!

Maria João Brito de Sousa disse...

Uma angústia muitíssimo bem descrita e enquadrada.

Escrever sobre alheias angústias pode ser uma excelente forma de nos ensinar a libertar-nos das nossas próprias angústias.

Um grande abraço, Elvira.

Rogério G.V. Pereira disse...

Essa, bem podia
ser a Minha-do-meio
cuja tristeza
à dela se assemelha
e a razão é a mesma

Não me deu nenhum neto

Abraço de avô entristecido

Janita disse...

Um drama vivido por muitas mulheres, mais do que aquelas que podemos imaginar.
Sofrimento calado, pois nem com o marido sentem à vontade para abordar esse assunto.

A Elvira vai descrevendo as cenas e os sentimentos da mulher com tanto realismo, que nós visualizamos tudo como se estivéssemos a ver.

Um grande abraço.

Andre Mansim disse...

Elvira!
Obrigado pelo toque lá no meu blog.
Eu escrevi o texto na correria porque estava no serviço e empolgado acabei postando sem corrigir.
Kkkkkkkkkkk. Prometo que não faço mais isso!
Um abraço!
Ótimo final de semana pra você.