A história que vou contar, passou-se numa pequena aldeia, do
concelho de S. Pedro do Sul, nos gloriosos e loucos anos 20. Numa pequena casa
tipicamente beirã, daquelas de granito que ficavam por cima da “loja” onde (quem
os tinha ) guardava os animais, e os mais pobres guardavam apenas os utensílios
de trabalho na terra, a caruma, e a
lenha para o fogo, viviam a Maria e o Manuel, mais os seus cinco filhos. A casa
era composta por uma ampla entrada, onde num canto havia uma chaminé, e um
pequeno forno de lenha onde a Maria cozia o pão. Não havia fogão, a refeição
era cozinhada numa panela de ferro, com três pés que assentava directamente em
cima da fogueira, que se acendia ao lado do forno, sobre uma placa metálica,
assente em cima das pedras, que formavam o chão. Completava a decoração, uma
comprida mesa de madeira e dois bancos corridos, que serviam na hora das
refeições.
Além desta “sala”, a casa tinha mais dois quartos. Num dormia o
casal, com o filho mais novo, no outro, os quatro filhos mais velhos. Nos
quartos, mantas de trapo, sobre enxergas de palha de centeio, serviam de cama,
na hora de descansar o corpo. Manuel, o marido trabalhava no campo quando havia
trabalho, e quando não batia as portas das redondezas à procura de ferro-velho
que depois vendia na Feira Velha, uma feira mensal que se fazia em S. Pedro a
cerca de 9 km que o Manuel fazia com o seu burrico que
ele baptizou com o nome de Tem Dias. Isto porque segundo ele o burro
tinha dias em que era obediente à voz do dono e outros em que empancava
e não se mexia por mais que recebesse ordem em contrário. Naquele longínquo ano
de 1927 Maria estava de novo grávida. Estávamos no início de
Setembro, Manuel não tinha trabalho, e nada havia para comer naquela casa. E se
o filho mais velho com 9 anos, já estava a "servir" em Lourosa e já
não dava cuidados os outros 4 tinham fome. Maria pensou que tinha que arranjar
comida para os filhos. O marido só chegaria à noite e quem sabe se traria ou
não alguma coisa para comerem. Deitou o bebé numa canastra que pôs à
cabeça, pegou no outro pequeno ao colo, e seguida dos outros dois foi em busca
de comida. Batia à porta das casas mais abastadas e oferecia algum trabalho em
troca de comida para as crianças. Não pedia esmola, tinha vergonha. Mas as
pessoas tinham pena das crianças e sempre lhe davam alguma coisa. Naquele dia,
numa dobra do caminho deparou com uma carteira. Era uma bela carteira de pele
com iniciais gravadas a ouro. A tremer Maria abriu a carteira e viu umas
quantas notas. Cada vez mais assustada tirou-as da carteira mirou-as e viu que
era 1 nota de mil escudos, 2 notas de 500 escudos 1 de 100, 3 de 50, e 5
de 10.
Uma verdadeira fortuna. Ao metê-las de novo na carteira qualquer
coisa caíu no chão e Maria viu que era uma fotografia. Reconheceu o homem. Um
doutor de uma aldeia vizinha, homem rico e influente com negócios em Lisboa e
Porto. Maria pegou na carteira e foi a casa do tal doutor. Lá chegada, puxou o sino do portão da
herdade e uma "criada" - naquele tempo chamavam-se assim, veio
à porta. Maria disse que tinha achado a carteira e vinha entregá-la. A criada
pegou na carteira e foi para dentro. Maria ficou à espera que ela voltasse.
Quem sabe lhe daria alguma comida para as crianças. Um palácio daqueles devia
ter mesa farta. Porém o tempo foi passando e a criada não voltava. Impaciente e
cansada com o peso dos filhos e da barriga, a mulher puxou de novo a sineta do
portão. E então a "criada" voltou.
-Entregou a carteira ao seu patrão? Perguntou Maria
- Entreguei - respondeu ela
- E o que ele disse?
-Guardou-a e não disse nada.
- Por favor diga que eu estou aqui, que tenho as crianças
com fome, se me pode dar alguma coisa para elas comerem.
-Espere um pouco que eu vou dizer-lhe.
A mulher virou costas e voltou pouco depois com uma corda.
Com lágrimas nos olhos estendeu-a a Maria dizendo.
- Eu fui falar com o Sr. Dr. e ele disse que era para eu lhe
trazer esta corda. E quando eu perguntei o que lhe ia dizer, ele mandou
que se enforcasse, porque uma pessoa que tem os filhos com fome, encontra uma
fortuna e vai entregá-la, não merece viver. Desculpe, dói-me tanto, mas foi o
que ele me disse.
Maria engoli-o as lágrimas, pegou os miúdos e virou costas
pensando:
-Que raio de País é este, onde ser honesto merece pena de morte?
25 comentários:
Puxa, que triste isso! Um final que faz pensar !! Triste situação e a honestidade ,tão em falta, deve ser exaltada e não açoitada! bjs, chica
Que triste =/
Nossa Elvira,
Esse homem deve estar morrendo de fome no inferno.
Obrigada pelos votos
Beijos
Dorli Ramos
Já tinha percebido que hoje estamos na forca
mesmo que se não vislumbre a corda
(bem contado!)
~~~
~ Que história impressionante, Elvira!
~ Mas a verdade é temos tanta criança com fome
e ''eles'' vão premiar quem tiver mais filhos,
o que não passa de uma armadilha, para UE ver...
~~~~~ Abraço amigo. ~~~~~
~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
Não é o país, Elvira Carvalho.
São as bestas, algumas bestas.
Esse ricaço seria a besta suprema.
F...da p....!!
olá, estou conhecendo o teu blog e já te sigo. vc escreve muito bem, de uma forma simples e envolvente. muito triste a história, pena que existam pessoa assim, não é mesmo? te convido a conhecer o meu cantinho, bjs
http://mentesinfantisfuturodapaz.blogspot.com.br/
Que horror de homem! Que sadismo, que desumanidade! Até fiquei com a cabeça a latejar de raiva!
Não sei se os contos que a Elvira constrói são totalmente fictícios ou mistura acontecimentos verídicos com ficçao, seja como for, escreve e descreve sentimentos e situações de forma muito bem enredada, que nos prende a atenção e nos emociona.
Parabéns, Elvira.
Um abraço.
Um relato impressionante, cara Elvira.
Há pessoas assim, sem coração e sem capacidade
para reconhecer a honestidade e premiá-la, que era
a única coisa justa a fazer. A mulher procedeu bem.
Infelizmente deparou-se na sua triste vida com
um ser impiedoso.
Muitos parabéns pela sua escrita, minha amiga.
Bj
Olinda
Oi Elvira,
Obrigada pelo carinho
Beijos
Dorli Ramos
Elvira,
O ser humano é como é, com virtudes e defeitos, mas não se olhe a árvore como se fosse a floresta.
Muito haveria a dizer acerca desta história (nela está implícita a discussão de valores, a pertinência dum percurso colectivo...), mas fiquemo-nos pelo ribombar do gesto da besta.
Bem descrito!
Um beijinho :)
Esta aqui, bem contada, ainda bem que é uma estória; o mal é que, por aí, há outras, algumas bem piores, que são histórias. Que não se deviam esquecer...
um abraço!
jorge
...
do outro lado 'der honesto' falhou em em 'ser honesto'...
Oi Elvira, os honestos pagam as regalias dos políticos em forma de impostos.´
Beijos
Dorli Ramos
Olá amiga Elvira, até fiquei com um nó na garganta, mas adorei o seu conto. Como eu gostava que a vida desse sempre finais felizes. É tão madrasta por vezes...Beijos com carinho
A honestidade também tem o seu preço e para muita gente não tem valor. Beijinhos
A honestidade também tem o seu preço e para muita gente não tem valor. Beijinhos
Será que não foi mentira da criada?
Cá para mim ela nem falou com o patrão.
Uma história triste onde a desistência de ter principios parece uma boa opção.
Beijinhos
Qué tremenda y triste historia, Elvira.
Para seguir dudando de la especie humana.
Abrazo austral y excelente fin de semana para ti y familia.
Uma história bem triste.
Isabel Sá
http://brilhos-da-moda.blogspot.pt
Bom dia, é incrível, ainda hoje existem mentalidades arrogantes assim, o que escreve revela na perfeição que as pessoas não se medem pela sua posição social, medem-se sim, pelo seu carácter.
AG
Oi Elvira.
Nós não enriquecemos e sim enriquecemos os "outros"
Beijos
Dorli
Corda quería o doutor amarrada ao pescozo.
É lamentável, mas hoje ainda tem gente que pensa assim. Cada um faz a sua parte. O julgamento vem depois.
Obrigado pela visita e pelo gentil comentário deixado no nosso Arte & Emoções.
Abraços,
Furtado.
Um conto que nos deixa atônitos ,Elvira
a gente nem imagina que exista alguém assim...
Pior e pensar que ainda exista pessoas assim...
Ótimo te ler Elvira
deixo abraços
Preferia que este conto fosse pura ficção, mas infelizmente não é. Ser honesto hoje é considerado uma anormalidade e por isso muitas vezes até é notícia na televisão. Ser honesto é obrigação do ser humano e por isso não deveria causar espanto. Aquele homem rico, deveria ter tido a sensibilidade de dar de comer aqueles seres trabalhadores e infortunados, não só porque lhe entregaram a carteira, mas também porque tem muito e não lhe faria falta o que desse a essas pessoas. Poderia até fazer com que nunca lhes faltasse uma refeição condigna. Mas é assim, Elvira. Hoje há pessoas com fome e muitas vezes não nos damos conta de que o vizinho do lado não tem um pão para dar aos filhos.. Obrigada, amiga por mais um belo conto. Espero que esteja tudo bem contigo e até breve. Agora serei mais assidua nas minhas visitas. Um beijinho
Emília
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