CAROLINA
A mulher que sentada na beira da cama se entregava à tarefa de entrançar a sua farta e negra cabeleira, não teria mais de 30 anos,
embora algumas pequenas rugas a fizessem parecer mais velha.
Era muito bonita, talvez um pouco alta demais para o comum das
mulheres portuguesas, mas muito bem proporcionada. Muito morena de cabelos e
olhos negros. Na aldeia quando era menina, e as outras crianças por qualquer
razão se zangavam, chamavam-lhe farrusca por causa do seu tom de pele. Ela
crescera com esse desgosto, mas agora estava na moda aquela cor e não raras
vezes ela notava os olhares de inveja que lhe lançavam.
Lançou um breve olhar sobre o berço onde um bebé dormia tranquilamente.
Hoje era um dia especial. O menino ia ser batizado. Não haveria festa, o
dinheiro era escasso, a vida estava muito difícil. Mas para ela o dia em que o
seu menino ia ser apresentado ao altar e purificado com o sacramento do altar
seria sempre um dia especial.
Acabou de entrançar o cabelo e enrolou a trança no alto da
cabeça prendendo-a com ganchos.
Alisou a saia rodada que lhe chegava a meio da perna, dobrou
um velho pedaço de lençol impecavelmente limpo em triângulo como se fosse um
lenço, dobrou outro pedaço igual de modo a ficar como uma tira que colocou por
cima do anterior, ficando assim com as fraldas preparadas para mudar o menino
quando ele acordasse. Debaixo da cama retirou uma caixa que colocou em cima da
mesma. Lá dentro repousava o vestidinho de crepe azul que a madrinha entregara
na véspera para o seu afilhado.
Foi até à cozinha,
pegou as malgas do pequeno-almoço que tinham ficado a escorrer e guardou no
armário. A cafeteira de alumínio foi pendurada na grade de madeira na parede.
A casa era pequena, apenas o quarto e a cozinha, mas apresentava-se
limpa. No quintal, separada da casa alguns passos, uma pequena divisão, com uma
sanita e um chuveiro. Claro que era aborrecido que não estivesse ligada à casa,
especialmente de noite e de inverno, mas ainda assim Carolina achava que tinha
muita sorte pois tinha água canalizada, coisa que algumas vizinhas no mesmo
pátio não tinham. Não tinha eletricidade, mas nunca faltara o petróleo para o
candeeiro.
Sentou-se de novo na beira da cama, junto ao berço do filho
e enquanto aguardava o marido que fora ao barbeiro à Telha, deixou que as
lembranças saltassem da gaveta das memórias, onde ela as trancara.
Carolina era a sexta filha de um casal já entrado na idade e
que já tinha cinco rapazes entre os vinte e os nove anos. Fruto de um descuido
do pai, a mãe que julgava estar na menopausa só se apercebeu da gravidez quando
já era demasiado tarde para a “pôr a estudar”.
A mãe falecera poucos meses após o seu nascimento, vítima de
complicações surgidas pós parto e o pai culpava-a pela morte dela. Os irmãos
não sabiam o que fazer com ela e não fora uma vizinha tomar conta dela, talvez
não tivesse sobrevivido. Não fora por isso uma criança desejada e muito menos
amada.
Mas como diziam na aldeia, “mal de quem vai, quem cá fica,
trambolhão daqui, trambolhão de ali, tudo se cria”
Quando Carolina entrou na adolescência mostrava já que iria
ser uma bela mulher, e aí começou nova luta, já que os irmãos (diziam que ela
estava uma bela franguinha e o mundo estava cheio de gaviões) e não a deixavam
pôr o pé fora de casa, e ela tinha ansias de liberdade. Entretanto o pai
faleceu, os dois irmãos mais velhos casaram e foram viver para a cidade grande,
o terceiro casara e fora viver com o sogro na aldeia vizinha. Na velha casa de
família restava ela e um dos irmãos, já que o mais novo estava na tropa. Farta
daquela vida, escrevera aos dois irmãos pedindo para ir viver com eles na
cidade, mas não recebeu resposta.
Então começou a juntar algum dinheirito, do que o irmão lhe
dava para as compras da casa, e um belo dia de Verão fugiu de casa rumo a
Lisboa. Acabara de fazer 14 anos mas o seu corpo era já o de uma mulher.
Em Lisboa arranjou trabalho numa casa grande onde já havia
uma cozinheira e uma outra rapariga que tomava conta dos bebés. Aí trabalhou 2 anos,
gostava da casa, dos meninos e das colegas. Aos patrões demasiado altivos nunca
se afeiçoou, mas sentia-se feliz. Até ao dia em que conheceu Jorge e se
enamorou perdidamente.
Conheceu-o numa das suas folgas enquanto passeava no Jardim
da Estrela. Ele não era de Lisboa, estava na capital a cumprir tropa. Virgem de
todas as emoções foi presa fácil do rapaz vivido e malandro que era Jorge.
Assim quando se deu conta ele tinha desaparecido e ela estava grávida. Os
patrões puseram-na na rua mal souberam da gravidez, e Carolina perdida, sem
saber o que fazer foi bater à porta do irmão mais velho.
Influenciado pela mulher o irmão acabou por a recolher em
casa, embora inicialmente a quisesse mandar de novo para a terra. Porém por
volta do 4º mês Carolina sofreu um aborto espontâneo e daquele episódio apenas
restou a amargura e a descrença nos homens. Poucos meses depois estava de novo
a trabalhar como “criada de servir” numa casa em Belém.
Passaram os anos, vieram outros namoros, mas quando ela
dizia que já não era virgem, a atitude dos rapazes mudava, deixavam de falar em
casamento e passavam a querer levá-la para a cama. Ela foi ficando cada dia
mais amarga e perdendo a esperança noutra vida que não aquela de cuidar de casa
alheias e filhos dos outros. E assim
ficou até aos 27 anos. Umas idades em que naquela época as mulheres já não
sonhavam com a maternidade contentavam-se em serem tias. Foi nessa altura que
conheceu o marido. Foi à saída da igreja que as suas mãos se tocaram na pia da
água benta. Olharam-se por segundos e sentiu-se corar.
Virou-se e saiu da igreja quase a correr. Ele seguiu-a e
quando ela se preparava para entrar no jardim da patroa segurou-a num braço e
perguntou se ela era casada. Perante a negativa ele perguntou se ela queria
casar com ele. Ela achou a pergunta descabida e sem sentido mas ele insistiu.
Sem saber o que pensar, ela respondeu-lhe que embora não
sendo casada, já não era virgem.
Ele respondeu que não fora isso que perguntara apenas queria
saber se ela queria casar com ele. Era pobre, mas tinha trabalho certo, vivia
com uma irmã, estava farto da vida de solteiro, tinha acabado de pedir ao
Senhor uma boa companheira, achara que o encontro na pia de água benta era um
sinal divino e não lhe importava o passado, já que esse era individual e
pertencia só a ela. O que lhe importava era o presente, e queria saber se ela
faria parte dele.
Não falava de amor, sabia que ele chegaria com o tempo e o
futuro a Deus entregava.
Carolina ficou encantada, e três meses depois estavam
casados.
Apesar da pobreza não se arrependera nem por um segundo.
- Lina estás pronta mulher? Já aqui estão os padrinhos do
menino.
Sacudiu a cabeça, e o seu rosto iluminou-se num sorriso
enquanto respondia.
29 comentários:
Mais um momento agradável de ler,com
um cunho especial:o seu!
Beijo.
isa.
Gostei de ler.
Agora tenho que pensar na minha participação.
Bom domingo.
Uma vez você me falou que estudou muito pouco e que tem pouca instrução... Eu fico imaginando como uma escritora tão boa que vc é, pode ter tido poucas chances de estudar!
Tudo o que vc escreve é muito bom da gente ler. Acho que pra ser escritor tem mesmo que vir da alma. Tem que ter o dom! E isso vc tem!
Muito bonita a sua contribuição na Blogagem Coletiva Amor aos Pedaços!
Que continuemos juntas com muito amor no coração!
bj Sandra
http://projetandopessoas.blogspot.com.br//
Enfim, acabou.
Acabou, mas como vivemos em círculos e espirais, encantamentos, desencantamentos, esperanças, questionamentos, se integram e reintegram em nosso cotidiano.
Vivemos. E sobrevivemos a tudo.
Obrigado pela participação. E sigamos em Conversas Cartomânticas.
A primeira parte do texto fez-me lembrar vagamente aquele folhetim radiofónico "Simplesmente Maria"... mas a verdade é que estas histórias aconteciam mesmo noutros tempos, com uma série de homens vividos que se aproveitavam da ingenuidade e solidão de algumas raparigas... :)
Essa do amor vir com o tempo, não sei não, é melhor esperar um bocadinho para ver se realmente não há nenhuma incompatibilidade de feitios... :D
Beijocas!
Antigamente era exactamente o oposto dos nossos tempos. Uma mulher que já não fosse virgem, já ninguem a queria. Hoje é mais: "se não serviu para os outros tambem não serve para mim!" eh eh eh!
Paródias à parte, um conto que reflete uma certa realidade que felizmente já quase não existe.
bjs
Querida amiga,
uma narrativa maravilhosa e tão autêntica!
E foi uma reintegração tão feliz!
Parabéns Elvira. Gostei imenso.
Abraço
Um momento de agradável leitura, foi o que aqui encontrei! Muitos parabéns Elvira, maravilhoso.
Bjs
Ainda bem que ela encontrou alguém que a fez feliz, bem merecia!
Linda história,adorei ler!!
Mais uma prova de que o amor pode surgir quando menos esperamos.
Uma ótima semana,=)
Olá Elvira!
Mais um conto, e que criatividade, adorei sua participação, parabéns, um grande abraço! Ieda.
Olá, Elvira!
Um belo conto, rico em detalhes e cheio de emoção. Prende nossa atenção do começo ao fim.
É uma bela história de reintegração, a da Carolina, que apesar das experiências negativas do passado, se lançou para uma nova experiência, fortalecendo-se nos aprendizados já experienciados.
Grande abraço
Socorro Melo
Muito bonito e comovente, amiga! Gostei muito. Essa cabecinha maravilhosa produziu mais um texto que li com muito, muito, interesse e, como sempre, as lágrimas vieram-me aos olhos.
A Carolina, fisicamente, parece-se com alguém que julgo conhecer, e psicologicamente também a identifico com outra pessoa. Bem-hajas! Que as " Carolinas" tenham a sorte que esta teve.
Beijinhos
Bem-hajas!
Olá Elvira.
Tudo fica bem quando acaba bem. Felizmente esse é um conto com final feliz. Gostei da parte em que ele pergunta a ela se quer fazer parte dele. Lindo isso.
Beijinhos e muito obrigada por te estado connosco durante estes 5 meses.
Rute
Até "perder" a virgindade engravidar e ser abandonada, era muito comum esse "enredo", muitos anos atrás. Nem todas tivera a "sorte" que Carolina teve, de se reintegra e ser feliz numa família completa...
Gostei, do tão detalhado conto!
Boa e produtiva semana, escritora.
Como sempre muito agradável de ler.
Cumps
A Blogagem Colectiva ficou, de certeza, muita mais enriquecida com
este conto tão verdadeiro e bem escrito como é teu apanágio!
Gostei muito e parabéns.
Beijo e boa semana.
Graça
Quanto todas as esperanças estão por terra e a descrença insiste em contaminar o coração, surge o amor para resgatar todo o ânimo, juntando todos os pedaços... Obrigada por participar mais uma vez da coletiva!! Boa semana!! Beijus,
Achei seu blog na blogosfera.
E adoreii!
Já estou te seguindo..
Me visite tbm
http://lidiepaulo.blogspot.com.br
Beijocas
Ótima Semana \º/
Um conto bem representado pelo título _' o amor aos pedaços' que andou despedaçando o coração da jovem Carolina .
Entre idas e vindas, enfim um porto seguro.Muito bom o final feliz.
Bela participação Elvira
deixo abraços
Felizmente que esses tempos já passaram e essas mentalidades estão em desuso.
Mas ... ainda há por aí muitas Marias e muitos homens justos, que apenas olham o coração. E isso já basta!
Beijinho Elvira
BELO... COMO SEMPRE!!!
Abraços
Uma ternura
Bjs
Elvirinha,
Passei para matar saudades e não me arrependo como é habitual.
Ao menos este li duma penada.
O Manuel fica para outro dia.
Beijos e boas férias se for o caso
Puxa, uma história com começo triste, mas um grande final...
Paz e bem
Olá, Elvira
"UMA GOTA DE ORVALHO NA BORDA DO CÂNTARO"
Extremamente cansada mas reintegrada... cheguei hoje da Missão...
Sou-lhe grata e a Deus por ter dado tudo certo.
Obrigada por termos chegado o fim da BCAP.
AMAR O OUTRO É RENUNCIAR POSSUÍ-LO, MESMO MORTO".
Abraços fraternos de paz
Olá Elvira!
Eu adorei esta história: está tão bem descrita que parece verdade. Já para não falar nos detalhes bem Portugueses - adorei.
Obrigada pelo seu comentário à minha participação no Etnias: O Bisturí da Sociedade.
Um abraço e tenha uma boa semana
Olá Elvira,
Andei lendo tuas postagens se me encantei com esse conto. E lhe pergunto: por que não mandas esse para ser divulgado no Contos e Prosas, aliás, nem precisa mandar; se autorizares eu o copio. Que tal?
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