Seguidores

Mostrar mensagens com a etiqueta memórias da minha infância. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta memórias da minha infância. Mostrar todas as mensagens

27.4.22

MEMÓRIAS DA MINHA INFÂNCIA

 


Antiga Seca do Bacalhau, onde nasci e vivi num velho barracão junto ao rio



Memórias da minha infância

Meus pais eram dois pobres trabalhadores, que viviam num velho barracão de madeira, bem na margem do rio Coina. Não tinham dinheiro, nem água, nem luz, mas eram jovens, e em menos de  três anos tiveram três filhos, o mais velho dos quais é esta vossa amiga.

Lembro-me do pequeno quintal, roubado ao mato pelo braço do meu pai. E do poço escorado com tábuas velhas, que num dia de temporal ruiu, e obrigou o meu pai a abrir outro de cimento. É que a água do rio estava ali mesmo ao pé da porta, mas era salgada. E o chafariz no Largo da Telha, ficava a mais de 500 metros.

E era lá que a mãe ia buscar a água, numa grande bilha de barro que transportava à cabeça, sobre uma rodilha de trapos velhos, quando o poço ruiu e até que meu pai conseguiu abrir outro.

Lembro-me dos móveis feitos pelo meu pai, com as tábuas salgadas, de velhos botes, que já não serviam para a pesca. Lembro-me disso, porque no Inverno a roupa lá guardada, sempre ficava húmida e fria.

E lembro-me daquele mês de Outubro em 1956 quando o vento ciclónico arrancou todas as telhas do velho barracão. E de como nessa noite, a chuva ensopou as mantas de trapos que nos cobriam.

Lembro-me ainda da primeira e única boneca que tive.

Era de papelão. Negra como carvão, com a boca pintada de vermelho vivo.

E eu que nos meus cinco anos, nunca tinha visto ninguém assim, pensei que estava muito suja.

Todas as semanas, a minha mãe punha um caldeirão ao lume com água e pedaços de sabão. Depois que a água fervia e derretia o sabão, ela despejava a água na celha de lavagem de roupa e mergulhava a roupa branca lá dentro deixando-a de molho até ao dia seguinte, para depois lavar. Chamava aquela operação, pôr a roupa na barrela.

E o que é que eu pensei, nos meus poucos anos? Se a barrela clareava a roupa também punha branca a minha boneca.  Assim que apanhei a minha mãe, ocupada com outros trabalhos, fui muito sorrateira peguei na colher de pau que a mãe usava para calcar a roupa na água quente, levantei um lençol, meti a boneca lá por baixo, calquei o lençol e fui-me embora pensando que no dia seguinte quando a mãe fosse lavar a roupa, a minha boneca estava limpinha.

Como devem calcular, a boneca ficou em papas, e para aplacar o meu desgosto, ganhei umas boas palmadas da minha mãe, zangada com a roupa toda tingida.

Era essa mesma celha, de lavar a roupa, metade de um barril de madeira, que nos servia de banheira, na hora do banho.

Ah! memórias da minha infância!...

Como eu ficava contente quando estreava um vestido, (feito quase sempre dos retalhos menos puídos, dos vestidos velhos da minha mãe, e que quando deixavam de me servir, passavam para a minha irmã.)

E o meu pai, que passava os seus tempos livres, sempre a cavar, sempre a semear. Para que nunca nos faltasse na mesa uma sopa.

E as brincadeiras com os meus irmãos. Construções de terra e água, única coisa que tínhamos com fartura ao pé da porta.

E os meus doze anos feitos a trabalhar na fábrica de cortiça, e os treze no armazém da lenha, e os catorze na Seca do Bacalhau, e os livros devorados de noite, à luz do teimoso, cabeça, livro e candeeiro debaixo dos lençóis para que os pais não vissem.

E eu a fazer-me mulher sem ter sido menina, e a revolta a crescer comigo, no desejo de agarrar entre as minhas mãos, a vida que me esperava, e lutar com ela até vencer ou ser vencida.

Ah! Memórias da minha infância!...

***********************************************************************

Era assim a minha vida e a de grande parte dos portugueses antes do 25 de Abril.