Memórias da minha
infância
Meus pais eram dois
pobres trabalhadores, que viviam num velho barracão de madeira, bem na margem
do rio Coina. Não tinham dinheiro, nem água, nem luz, mas eram jovens, e em
menos de três anos tiveram três filhos,
o mais velho dos quais é esta vossa amiga.
Lembro-me do pequeno
quintal, roubado ao mato pelo braço do meu pai. E do poço escorado com tábuas
velhas, que num dia de temporal ruiu, e obrigou o meu pai a abrir outro de cimento. É que a
água do rio estava ali mesmo ao pé da porta, mas era salgada. E o chafariz no
Largo da Telha, ficava a mais de 500 metros.
E era lá que a mãe ia buscar a água, numa grande bilha de barro que transportava à cabeça, sobre uma rodilha de
trapos velhos, quando o poço ruiu e até que meu pai conseguiu abrir outro.
Lembro-me dos móveis
feitos pelo meu pai, com as tábuas salgadas, de velhos botes, que já não
serviam para a pesca. Lembro-me disso, porque no Inverno a roupa lá guardada,
sempre ficava húmida e fria.
E lembro-me daquele mês
de Outubro em 1956 quando o vento ciclónico arrancou todas as telhas do velho
barracão. E de como nessa noite, a chuva ensopou as mantas de trapos que nos
cobriam.
Lembro-me ainda da
primeira e única boneca que tive.
Era de papelão. Negra
como carvão, com a boca pintada de vermelho vivo.
E eu que nos meus
cinco anos, nunca tinha visto ninguém assim, pensei que estava muito suja.
Todas as semanas, a
minha mãe punha um caldeirão ao lume com água e pedaços de sabão. Depois que a
água fervia e derretia o sabão, ela despejava a água na celha de lavagem de
roupa e mergulhava a roupa branca lá dentro deixando-a de molho até ao dia
seguinte, para depois lavar. Chamava aquela operação, pôr a roupa na barrela.
E o que é que eu
pensei, nos meus poucos anos? Se a barrela clareava a roupa também punha branca a minha boneca. Assim que apanhei a
minha mãe, ocupada com outros trabalhos, fui muito sorrateira peguei na colher
de pau que a mãe usava para calcar a roupa na água quente, levantei um lençol,
meti a boneca lá por baixo, calquei o lençol e fui-me embora pensando que no
dia seguinte quando a mãe fosse lavar a roupa, a minha boneca estava limpinha.
Como devem calcular, a
boneca ficou em papas, e para aplacar o meu desgosto, ganhei umas boas palmadas
da minha mãe, zangada com a roupa toda tingida.
Era essa mesma celha,
de lavar a roupa, metade de um barril de madeira, que nos servia de banheira, na
hora do banho.
Ah! memórias da minha
infância!...
Como eu ficava
contente quando estreava um vestido, (feito quase sempre dos retalhos menos
puídos, dos vestidos velhos da minha mãe, e que quando deixavam de me servir, passavam para a minha irmã.)
E o meu pai, que
passava os seus tempos livres, sempre a cavar, sempre a semear. Para que nunca
nos faltasse na mesa uma sopa.
E as brincadeiras com
os meus irmãos. Construções de terra e água, única coisa que tínhamos com fartura ao pé da porta.
E os meus doze anos
feitos a trabalhar na fábrica de cortiça, e os treze no armazém da lenha, e os
catorze na Seca do Bacalhau, e os livros devorados de noite, à luz do teimoso, cabeça, livro e candeeiro debaixo dos lençóis para que os pais não vissem.
E eu a fazer-me mulher
sem ter sido menina, e a revolta a crescer comigo, no desejo de agarrar entre
as minhas mãos, a vida que me esperava, e lutar com ela até vencer ou ser
vencida.
Ah! Memórias da minha
infância!...
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Era assim a minha vida e a de grande parte dos portugueses antes do 25 de Abril.