Reprodução de parte de um afresco de Pisanello
Três horas da madrugada. No quarto às escuras um homem, está sentado na cama, com a cabeça entre as mãos. De vez em quando um ronco
surdo quebra o silêncio em que a casa está mergulhada. Bruno sabe que é o pai
no quarto ao lado. Desde menino habituou-se a ouvir aquele ronco. É-lhe tão
familiar que há muito deixou de o ouvir. Ou pelo menos, não chega para lhe
perturbar os pensamentos. Que diga-se em abono da verdade, são bem
perturbadores. Bruno é um homem jovem. Completou à pouco vinte e sete anos.
Baixo, faltam-lhe alguns centímetros para o metro e sessenta, e isso, sempre
foi um pesadelo para ele. Porque apesar do rosto perfeito, ele sempre estivera
abaixo da média em altura. Desde a escola, onde os outros meninos, lhe
chamavam, anão, ou meia-leca. Ou mesmo quando rejeitavam a sua presença nos
jogos do recreio. As crianças podem ser extremamente cruéis sem se darem conta,
nem deixarem cair o sorriso.
Bruno foi crescendo sentindo-se rejeitado por uma
sociedade que avalia os homens em centímetros e não pelo carácter. Aos 16 anos apaixonou-se por uma colega de escola. Levou todo um período a ensaiar as
palavras para se declarar. E ela riu-se dele. Desde esse dia a revolta
instalou-se-lhe no peito, e como erva daninha foi devorando tudo de bom que
havia nele.
Aos 19 anos abandonou os estudos. Era bom aluno mas
perdera todo o interesse pelos estudos. Foi considerado inapto para a tropa.
Por essa altura o irmão mais velho casou-se e foi viver para os arredores. Pouco depois o pai
emigrou para a França. Era um bom carpinteiro, arranjara um contrato muito atractivo, e
seria a hipótese de conseguir ganhar um bom dinheiro e construir a casinha com
que sonhava, já que o terreno lhe deixara um tio em testamento.
Sem o pai e o irmão mais velho, Bruno sentiu-se amputado de parte de si mesmo. Como se precisasse de bengalas
para caminhar, e de repente lhas roubassem.
Ia de casa para o trabalho e do trabalho para casa.. Não falava com
ninguém, a não ser no trabalho nos assuntos que precisava tratar com os
colegas. Não gostava de ler. Os livros retratavam personagens completamente
opostos ao que ele era. Os filmes a mesma coisa. Odiava futebol, porque lhe recordava a exclusão que sofrera por parte dos colegas em criança.
Dia após dia, Bruno caía no poço sem fundo da depressão.
A mãe, era boa pessoa, mas não entendia o que se passava com ele.
Às vezes dizia-lhe para sair, se divertir, que parecia um velho. Bruno encolhia os
ombros e não respondia.
Uns meses atrás o pai terminara o contrato de trabalho em
França e regressara cheio de planos para a tal casinha.
Estranhara ver o filho tão macambúzio, mas pensara. ”É
muito jovem, tem a vida pela frente, aquilo passa-lhe.” Ainda assim disse-lhe:
-Ó rapaz vê lá se arranjas uma namorada. Olha que na tua idade eu já era vosso pai.
Um mês depois o irmão fora pai, e os pais, viviam “babados”
nas gracinhas do neto.
Bruno sente um enorme apelo para a suicídio.Há meses que pensa nisso. A ideia de suicídio, chegou de mansinho,e quase sem ele dar por isso foi-se insinuando a toda a hora. Pensa que
seria o remédio certo para todos os seus medos, as suas angústias.Um ponto final, numa vida sem história. Como se fosse um sinal, no quintal o galo canta. Bruno põe-se de pé e de mansinho, abre a porta da cozinha e sai. No céu estrelado uma redonda e esplendorosa lua derrama para o quintal, uma luz intensa. Ao fundo a casa das ferramentas. No meio do quintal um pilar de
ferro, donde parte um arame que passa pelo terraço por cima da casa de
ferramentas. O estendal da roupa. Como um autómato, vai à casa das ferramentas
e sai com uma corda e um pequeno banco. Faz um laço numa das pontas, passa-a
pelo pescoço, sobe para o banco, amarra bem a outra ponta no pilar de ferro, e
depois de tudo pronto, sem hesitação, derruba o banco.
Nesse momento uma nuvem encobre a lua, e a escuridão cai sobre a madrugada.
Elvira Carvalho
Continuo doente. Amanhã vou de novo ao médico.