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28.3.09

PARA TI, PAIZINHO


Se llamava Manuel, nació en España,
su casa era de barro, de barro e caña.
Las tierras del señor humedecían
su sudor y su llanto dia tras dia.

Introduzi a 1ª quadra dum belíssimo poema de Serrat para falar de um certo Manuel, que não nasceu em Espanha, mas cuja vida foi igualmente sofrida. Chama-se Manuel, nasceu no interior norte deste país, que para alguns - muito poucos - é um jardim á beira-mar. Quarto filho de uma pobre mulher que nunca conheceu marido, não conheceu escola. Começou a trabalhar ainda menino. Os filhos do patrão, ensinaram-lhe a ler e a escrever.A meninice e a juventude ficou para trás nessa pequena aldeia, no dia em que imigrou para o sul procurando melhor vida. Na margem sul do Tejo, começou a trabalhar numa seca de bacalhau. Aí conheceu a mulher com quem casou e que viria a ser a companheira de toda a vida. Sua casa não era de barro, mas era um barracão de madeira, assente em pilares de cimento á beira-rio. Era um barracão sem água nem luz, mas que o patrão lhe tinha cedido e do qual não pagava renda. Aí lhe nasceram três filhos em menos de três anos. Com autorização do patrão, rompeu ao mato um bocado de terreno para semear alguma coisa que lhe ajudasse a criar os filhos. Com as próprias mãos, abriu um poço, para regar o terreno e para ter água em casa. Trabalhava dia e noite disfarçando as lágrimas e a revolta em piadas brejeiras, e em brincadeiras carnavalescas. Adorava futebol. Lembro-me que não tinhamos rádio e que ele construíu uma engenhoca a que chamava galena, e que lhe permitia com uns auscultadores ouvir os relatos de futebol. Pegou a vida pelos cornos, apesar da sua figura franzina. É o exemplo de que os homens não se medem aos palmos. Anos mais tarde , as filhas casadas, a idade da reforma chegou com mais uma provação. A mulher, companheira de sempre, sofreu um AVC e ficou paralizada. E Manuel começou uma nova luta. Tratar da mulher e levar para a frente a casa. Tem a ajuda dos filhos, mas apesar de toda a boa vontade, têm a sua vida e as suas casas e o que fazem é só isso. Uma ajuda. Mas ele continua alegre, com as suas brincadeiras. Com a paixão pelo futebol, e pela vida, costuma dizer com uma certa graça que sabe que há-de ir um dia , mas que vai á força, porque de vontade a morte nunca o apanharia. Chama-se Manuel, nasceu em Portugal, tem 89 anos, e eu tenho um enorme orgulho em ser sua filha.


HÁ UM ANO ATRÁS EU PUBLIQUEI ESTE TEXTO. HOJE O MANUEL SE FOI, E A MINHA TRISTEZA É INDISCRITÍVEL.

8.3.09

8 DE MARÇO - DIA INTERNACIONAL DA MULHER


Mulher da Vida, minha Irmã.
De todos os tempos.
De todos os povos.
De todas as latitudes.
Ela vem do fundo imemorial das idades e
carrega a carga pesada dos mais
torpes sinônimos,
apelidos e apodos:
Mulher da zona,
Mulher da rua,
Mulher perdida,
Mulher à-toa.

Mulher da Vida, minha irmã.

Pisadas, espezinhadas, ameaçadas.
Desprotegidas e exploradas.
Ignoradas da Lei, da Justiça e do Direito.
Necessárias fisiologicamente.
Indestrutíveis.
Sobreviventes.
Possuídas e infamadas sempre por
aqueles que um dia as lançaram na vida.
Marcadas. Contaminadas,
Escorchadas. Discriminadas.
Nenhum direito lhes assiste.
Nenhum estatuto ou norma as protege.
Sobrevivem como erva cativa dos caminhos,
pisadas, maltratadas e renascidas.


Flor sombria, sementeira espinhal
gerada nos viveiros da miséria,
da pobreza e do abandono,
enraizada em todos os quadrantes da Terra.

Um dia, numa cidade longínqua, essa
mulher corria perseguida pelos homens que
a tinham maculado. Aflita, ouvindo o
tropel dos perseguidores e o sibilo das pedras,
ela encontrou-se com a Justiça.


A Justiça estendeu sua destra poderosa e
lançou o repto milenar:
“Aquele que estiver sem pecado
atire a primeira pedra”.

As pedras caíram
e os cobradores deram s costas.

O Justo falou então a palavra de eqüidade:
“Ninguém te condenou, mulher...
nem eu te condeno”.

A Justiça pesou a falta pelo peso
do sacrifício e este excedeu àquela.
Vilipendiada, esmagada.
Possuída e enxovalhada,
ela é a muralha que há milênios detém
as urgências brutais do homem para que
na sociedade possam coexistir a inocência,
a castidade e a virtude.

Na fragilidade de sua carne maculada
esbarra a exigência impiedosa do macho.
Sem cobertura de leis
e sem proteção legal,
ela atravessa a vida ultrajada
e imprescindível, pisoteada, explorada,
nem a sociedade a dispensa
nem lhe reconhece direitos
nem lhe dá proteção.
E quem já alcançou o ideal dessa mulher,
que um homem a tome pela mão,
a levante, e diga: minha companheira.

Mulher da Vida, minha irmã.

No fim dos tempos.
No dia da Grande Justiça
do Grande Juiz.
Serás remida e lavada
de toda condenação.

E o juiz da Grande Justiça
a vestirá de branco
em novo batismo de purificação.
Limpará as máculas de sua vida
humilhada e sacrificada
para que a Família Humana
possa subsistir sempre,
estrutura sólida e indestrurível
da sociedade,
de todos os povos,
de todos os tempos.

Mulher da Vida, minha irmã.

Cora Coralina

A todos os que por aqui passarem um bom Domingo, e um feliz dia.