Ultimamente, ouço cada vez mais, em velhos e até em alguns mais jovens, sempre que chegam a um qualquer serviço público, que encontram em greve, a propósito da educação que todos reconhecemos deficiente, do SNS que também apresenta muitas falhas, ou de qualquer outro problema a seguinte frase "Hoje há Liberdade a mais, isto está a precisar de outro Salazar".
Nasci numa família muito pobre. O barracão onde vivíamos, não tinha água, nem
luz e dividi com dois irmãos mais novos, uma infância onde nossos pais trabalhavam arduamente, sempre com medo de um dia não terem uma sopa e um pedaço de pão para nos matar a fome. Frequentei uma escola, que tinha apenas duas salas, uma, onde uma professora ensinava, na mesma sala, alunas da primeira à terceira classe. A segunda sala, era a casa de banho, composta por uma pia com torneira, e dois potes de barro para fazermos as necessidades.
Mal terminei as aulas, comecei a trabalhar. Fazia recados, tocava o gado na nora, da quinta do ti’ Pereira, para que a água não faltasse na rega e carregava padiolas de estrume, que vinham pelo rio em fragatas, para adubar as terras.
Depois trabalhei num armazém de lenha, carregando troncos de árvore que pesavam tanto ou mais do que eu. Mais tarde, aos 14 anos, fui trabalhar para a Seca do Bacalhau.
Como quase toda a gente que vive assim, o meu maior sonho na altura, era viver numa casa de pedra, com água e luz e uma casa de banho com uma banheira, pois sempre tomávamos banho na selha, onde a mãe fazia a barrela e lavava a roupa, sonho que só se cumpriu anos mais tarde, quando consegui emprego num laboratório farmacêutico, em Lisboa e fui viver com uns tios que viviam em Monsanto, numa casa do estado, pois meu tio era guarda-florestal. Depois casei, meu marido era militar, e acompanhando-o, vi e vivi novas experiências.
No norte de Moçambique, pela primeira vez, conheci a realidade dos jovens que ali chegavam estropiados, vítimas de uma guerra que ninguém queria, mas contra a qual não se podiam manifestar, sob pena de acabarem nalguma sala de tortura.
Quando aconteceu o 25 de Abril pensei que a vida dos portugueses ia enfim tomar um novo rumo. Com a Liberdade não íamos mais olhar o nosso vizinho com desconfiança cada vez que desabafava-mos sobre as dificuldades da vida, já que até aí muitos iam presos um ou dois dias depois de certos desabafos. Pensei também que com o fim das guerras coloniais, a vida dos jovens portugueses ia melhorar muito. Iam deixar de ser obrigados a partir para a guerra, iam deixar de voltar estropiados, física e mentalmente. E esses sonhos concretizaram-se com a democracia, é verdade. Ninguém mais foi preso por pensar diferente do regime e a guerra colonial acabou.
Talvez a descolonização pudesse ter sido feita de outra maneira. Talvez pudessem ter sido assegurados os direitos dos portugueses que lá viviam há muito e dos que lá nasceram, mas que experiência política tínhamos nós? Os militares fizeram a parte deles, mas um excelente militar, nem sempre é um bom político e os civis, queriam era ter a certeza de que os seus filhos e netos, não mais teriam que ir para lá.
Mas meu Deus como a vida mudou depois do 25 de Abril. Só a liberdade de poder dizer o que se pensa, sem medo, não tem preço.
Os salários melhoraram, as crianças deixaram de ser obrigadas a trabalhar, para complementar o salário dos pais, nasceram novas escolas, criou-se o SNS que tem, todos sabemos deficiências, mas é bem melhor do que quando ele não existia. Mudou-se a noção de pobreza, que existe sem dúvida, e é nossa obrigação pressionarmos o governo por melhores condições de vida, para todos, mas que não se compare a vida hoje, àquela que havia antes do 25 de Abril, e contra a qual ninguém podia abrir a boca, sob pena de acabar preso ou morto.
Então que ninguém me venha dizer, que há Liberdade a mais, que o País está um caos e a precisar de outro Salazar.
Elvira Carvalho