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18.12.17

BOLO-REI






Todos os anos, quando os velhos Reis Magos acabam de atravessar a pequena estrada de areia que se esboça entre caminhos de musgo e lagos feitos de bocados de espelho partido; quando a estrela de prata que se suspende entre os dois exemplares de “A Paleta e o Mundo” de Mário Dionísio se recolhe para regressar à velha caixa de papelão, com trinta anos de viagens, cheia de bocados de jornal amachucados que ainda guardam notícias de dias que já foram e onde se embrulham os cordeirinhos, os pastores, as oferendas várias que o Menino Jesus recebeu, apesar de já lhe faltar a mãozinha direita que alguém partiu em excesso de limpeza; todos os anos, dizia, recordo a história que o Fernando Midões me contou, certa tarde em que misturámos poemas com lágrimas.
De calças à golfe, lacinho à Baptista Bastos, fato de ver a Deus e celebrar o Dia de Reis, Fernando foi com a mãe jantar a casa das senhoras, gente de talher de prata, criadas de avental branco e crista engomada, cheias de silêncios e reverências.
Com olhos de amora madura, esse sorriso que ainda hoje conserva, sempre molhado de uma melancolia que tem de adivinhar-se mais do que ver-se, Fernando entrou na sala de jantar das anfitriãs, cujas portas só o espírito natalício abria, raros que eram os gestos de caridade e partilha. Assim se explicava a presença do rapazinho e sua mãe, viúva recente e que ali trabalhava de manhã à noite, para que a vida se assemelhasse ao que já fora.
Servidos os manjares da época: a canja onde as bolhas de gordura lembravam pequenos sóis fumegantes, o leitão de maçã vermelha na boca que olhava Fernando em gritos de sufoco que só ele, poeta em germinação, conseguia ouvir; os fritos vários que nas travessas exibiam a abastança, chegou finalmente e foi colocado em lugar de honra, no centro da mesa, ladeado por dois castiçais onde as velas vermelhas ardiam, o bolo-rei, roda magnífica de cores, frutas, pinhões, bocados de açúcar que lembravam neve e cujo esplendor ofuscava o dourado das filhós, os reflexos das garrafas de licor, o brilho dos copos de cristal.
Fernando, pequenino, queixo tocando a toalha de renda, olhava aqueles mistérios de cor e perfume e falava, falava, dizia coisas tão a propósito que as senhoras, enlevadas, não se cansavam de sorrir e felicitar a mãe que tal filho tinha. Então, a mais velha, cabeção de renda e camafeu de marfim a fechar as golas, pega na faca de prata e com solenidade, meticulosamente, parte o bolo. A criada ajuda à distribuição nos pratinhos de sobremesa.
— Agora, não se esqueçam: aquele ou aquela a quem calhar a fava terá de pagar o bolo-rei no ano que vem!
E entre comentários de enlevo, gula, elogios à tessitura e ponto ideal do levedo da massa, à abundância das frutas, à maciez e agrado do paladar, se comeu a sobremesa.
A prenda calhou à criada.
— Que sorte! Mostre lá!
— Olhe que medalha tão bonita! Parece uma libra de verdade. Até pode usar no fio que ninguém diz que não é autêntica.
— E tu, Fernandinho, não acabas de comer a tua fatia de bolo?
— Come que está bom e fofinho!
Fernando, subitamente silencioso, abanava a cabeça em negativas.
— Então, filho! Não sabes falar? Responde às senhoras: queres mais um bocadinho de bolo?
— Ao menos acaba esse!
— Está cansado, coitadinho! Deixe-o lá.
Fernando baixava a cabeça, cabelos lisos na testa. A noite ia adiantada. A Miguel Bombarda, onde moravam, ainda ficava longe. Sim, minha senhora, amanhã às oito cá estarei, se Deus quiser, para cortar o vestido novo e pôr em prova a saia do “tailleur”. Foi uma noite muito bonita. Muito obrigada! Fernando dá um beijo às senhoras e agradece. Diz obrigado, Fernando!
Fernando deu o beijo às senhoras, esticou a cara, pôs-se em bicos dos pés, encheu os olhos de gratidão.
— Diz obrigado, filho! Mas o que te aconteceu?
— Deixe-o lá, coitadinho, perdeu a língua. É o sono, não é?
Descem o elevador, abrem a porta da rua. A mãe, agastada, ralha:
— Mas que vergonha! Umas senhoras tão boas, recebem-nos como família, estavas a portar-te tão bem e agora isto, nem uma palavra de agradecimento, nem boa noite, é esta a educação que te tenho dado? Se o teu pai fosse vivo…
Então, já na rua, o frio de Janeiro a gelar-lhe as mãos e o nariz, a névoa a transfigurar a rua e as pessoas, Fernando, finalmente, abre a boca e lá do fundo deixa voar o mistério da sua inesperada mudez:
— É que me calhou a fava, mãezinha. Eu sei que tu não tens dinheiro para, no ano que vem, comprares um bolo-rei igual àquele.
E, na palma da mão pequenina, cuspiu a fava que ali nascia, quente ainda, do esconderijo em que estivera.
E ainda hoje, nas horas mais dolorosas, quando se esquece de mastigar a comida que arrefece no tabuleiro da cantina e prefere viajar no país da infância, Fernando Midões, meu irmão mais antigo, sente a ternura solidária do abraço e o húmido das lágrimas com que a mãe o aconchegou junto de si.
Sem palavras, mãe.
Sem palavras.






Maria Rosa Colaço
Viagem com Homem dentro (adaptação)
Leiria, Editorial Diferença, 1998

15 comentários:

Isa Sá disse...

Uma criança que já tinha consciência das dificuldades da vida.


Isabel Sá
Brilhos da Moda

Rogério G.V. Pereira disse...

Fernando Midões só há um, o meu Camarada- Amigo e mais nenhum.

Vou levar este conto para o meu espaço, referir a quem o roubei e ofereçe-lo à filha do Fernando para que lho leia, quando o visitar na "Casa do Artista" onde vai remoendo memórias umas amargas outras gostosas...

_ Gil António _ disse...

Um conto muito bonito. Adorei ler
.
Hoje: ***Mulher:» O equilíbrio emocional. A solução***
.
Votos de um dia feliz
BOM NATAL
.

Os olhares da Gracinha! disse...

Magnífica a sua escolha de hoje!!!
bj

chica disse...

Lindo conto!Gostei! bjs, tudo de bom,chica

Fá menor disse...

Sempre belos contos!

Os meus votos de um Santo e Feliz Natal e óptimo Ano Novo!

Bjos, amiga!

Majo Dutra disse...

Está verdadeiramente comovente, Elvira.
Abraço, Amiga.
~~~~~~~~~

Joaquim Rosario disse...

boa tarde
o que o silencio por vezes diz !!!
JAFR

Mariazita disse...

A minha visita de hoje tem apenas como finalidade desejar BOAS FESTAS.
E, para isso, nada melhor do que fazer-me acompanhar de Mahatma Gandhi (Mahatma – “A grande Alma”), e suas sábias palavras:

“Se eu pudesse deixar algum presente a você, deixaria aceso o sentimento de amar
a vida dos seres humanos.
A consciência de aprender tudo o que foi ensinado pelo tempo afora.
Lembraria os erros que foram cometidos para que não mais se repetissem.
A capacidade de escolher novos rumos.
Deixaria para você, se pudesse, o respeito àquilo que é indispensável:
Além do pão, o trabalho.
Além do trabalho, a acção.
E, quando tudo mais faltasse, um segredo:
O de buscar no interior de si mesmo a resposta e a força para encontrar a saída."
(Gandhi)

UM SANTO E FELIZ NATAL!

Beijinhos
MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS

Silenciosamente ouvindo... disse...

Amiga desejo que se encontre bem.

Venho especialmente desejar-lhe a si
e sua Família um Feliz e Santa Natal.

Bjs.
Irene Alves

Edum@nes disse...

Gostei da história. Não me calhou a fava. Não comi uma fatia desse Bolo-Rei que se vê na imagem!

Tenha uma boa noite amiga Elvira, um abraço,
Eduardo.

lis disse...

Achei bem interessante Elvira
E o bolo-rei é uma sonho de consumo nessa época.Também gostaria de comer um ! rs
Feliz Natal ,com meu abraço amigo

Pedro Coimbra disse...

Nunca uma fava foi tão bela.
Abraço

Ailime disse...

Um conto muito belo.
Gostei imenso do pensamento da criança.
Beijinhos,
Ailime

Existe Sempre Um Lugar disse...

Votos de Feliz Natal,
AG